Sunday, January 15, 2006

Aprendendo a sobreviver no Egito antigo

Das lembranças de Gabriel Graham Storm

- Anúbis... O Deus-chacal, o patrono dos embalsamadores, dos curadores e dos cirurgiões! Tanto em cerimônias de cura quanto em mumificasses, Anubis era a deidade patrona que preparava o morto e curava o vivo. Anubis é considerado o grande Deus-necropolitano e...

O sinal tocou indicando o fim da aula e fechei meu livro. Ainda vestia os trajes da aula, uma roupa que os egípcios usavam há muitos anos atrás. O professor parecia fazer questão de que seus alunos trajassem essas vestes incomuns, segundo ele dava um clima melhor à aula. Miyako ainda estava parada encarando o professor, absorvendo o que ele havia dito, e Ty arrancava impaciente o monte de pano, se embolando neles mais ainda sempre que tentava tirar de uma vez.

MS: Muito interessante essa aula de hoje, não é meninos?
TM: Demais... O que é deidade afinal de contas? – Ty perguntou confuso.
GS: É a divindade mitológica, a deusa. Faz sentido agora?
TM: Aaaah, agora sim. Por isso que é bom ter um amigo nerd!
MS: O garoto-enciclopédia!

Ty deu três tapinhas nas minhas costas e riu. É crime agora ler dicionário? Não vejo mal algum em consultar ele quando não entendo as palavras citadas nos livros...
Seguimos até o grande salão para jantarmos e Ty tinha um ar suspeito estampado na cara. Ele veio mudo e caminho todo e assim permaneceu durante o jantar. Tudo bem que ele não é de falar muito no meio das refeições, pois atrapalha a mastigação, mas não estava gostando do sorrisinho besta dele. Tentando não transparecer minha curiosidade, fitei meu prato e parei de olhar para ele. Miyako terminou de comer e se espremeu ao meu lado, soltando a pergunta que temia.

MS: O que está tramando Ty?
TM: Estive pensando...
GS: Ah ótimo, é assim que começam as piores idéias sabiam?
MS: Calado Gabriel, deixa-o falar!
TM: Tem gente demais aqui, me encontrem naquela sala vazia do 5º andar às 18hs e eu explico.

Ty se levantou e desapareceu pelos corredores. Fiquei olhando intrigado para Miyako e apesar de dizer que não iria aparecer na tal sala às 18hs coisa alguma, ela sabia que cinco minutos antes eu já estaria lá, me roendo de curiosidade. E não deu outra. Faltavam cinco minutos para as 18hs quando esbarrei com Mi na porta da sala, enrolada em vários casacos para se proteger do frio e procurando Ty, mas não havia sinal dele. A porta da sala abriu logo depois, revelando o cabeção dele na fresta.

TM: Não vão entrar?
GS: O que você esta aprontando? E que cheiro é esse?
MS: Ty seu porco, nos chamou aqui pra isso?
GS: O que é... Onde você conseguiu isso???

Em cima da mesa estava espalhado todo o material citado pelo professor François para o processo de mumificação. Os quatro vasos, chamados de vasos canopos, estavam enfileirados ao lado de ataduras e para meu total horror, facas. Ty foi ate o fundo da sala e voltou com um gato nos braços. O gatinho não se mexia, parecia morto. Ele o depositou sobre a mesa e Miyako o cutucou com a varinha para se certificar de que ele não acordaria. Após constatar que ele estava totalmente apagado, ela nos encarou.
MS: Então...
TM: Exatamente! Podemos por em pratica o que aprendemos hoje!
GS: Vocês enlouqueceram? Ty, de quem é esse gato? O como você conseguiu esses vasos?
TM: Relaxa lobão, respira. Os vasos são do professor François, eu peguei emprestado. O gato, bom...
GS: Por favor, diz que esse gato ta morto e que você não é o responsável pela morte dele!
TY: Não o matei não, achei no jardim. Acho que ele morreu de velhice ou sei lá o que, mas o fato é que salvei a vida dele. Graças a nós, ele terá uma vida após a morte digna!
MS: Eu topo. Pobre bichano...
GS: Não contem comigo, nem pensar. Não vou abrir o gato!
MS: Abrir o gato? Como assim? – Mi arregalou os olhos e olhava de mim para Ty assustada.
GS: Abri-lo sim, não prestou atenção na aula? Eles tiram as vísceras dos que estão sendo mumificados e depositam nesses jarros aí.

Miyako fez menção de vomitar, mas Ty a acalmou dizendo que ela não precisaria fazer essa parte, bastava enrolar o gato vazio nas ataduras. Em compensação, eu teria que ajudar nisso, pois segundo Ty eu era o garoto-natureza que adorava qualquer tipo de bicho e não tinha nojo de nada. Ainda relutei por um tempo, mas sempre caia na deles, eles me venciam no cansaço.

Não estava acreditando que estava participando desse ato horroroso, mas pensando por outro lado, era uma pratica comum no Egito antigo. Mi estava olhando de longe e tampando o nariz e a boca com a capa enquanto abríamos o gato. O fedor era horrível, impregnou nas nossas roupas e se espalhou pela sala, mas já tínhamos começado, não dava pra costurar o gato de novo.

GS: Traz o Imset até aqui, Mi.
MS: Quem?
GS: O vaso com a cabeça humana...
MS: Fala nossa língua, facilita pra todo mundo...
GS: Abre o livro na pagina que explicam eles, assim você não fica perdida. Nesse vaso aí é onde se deposita o fígado.
MS: Blergh! Vou voltar lá pra trás, ok?
TY: Gostei nos nomes científicos! Deixa experimentar... – Ty abriu o livro dele com o queixo e leu rapidamente os nomes – Hum, me traz o... ahn, como é que se fala isso? Duamutef! É isso Gabriel?
GS: Sim, nesse fica o estomago, e não são nomes científicos, são os nomes deles mesmo.
MS: Sim, já achei, é o que tem a cabeça de um chacal!

Mi largou os dois vasos na mesa e correu de volta para o fundo da sala, enterrando a cabeça no livro. Ty começou a cutucar o gato furiosamente e a puxar com força algum órgão dele. Imediatamente pus as mãos na frente impedindo, antes que ele dilacerasse o gato. Ele estava com dificuldades de tirar o pulmão dele e resolveu partir pra agressão. Conseguimos retirar os demais órgãos e deixamos o gato estirado na mesa, como se tivesse saído de uma autopsia. Mi veio caminhando com os dois últimos vasos na mão e lia em voz alta o livro.

MS: No Hapi, vaso sagrado com a cabeça de um babuíno, deve ser depositado os pulmões da múmia. Já no Kebehsenuef... Ai que nominho hein? Ta certo isso Gabriel?
GS: Ta sim, continua. – falei rindo.
MS: Ok. No Kebehsenuef, 4º e ultimo vaso sagrado, aquele com a cabeça de um falcão, devem ser depositados os intestinos da múmia.
TM: Vamos finalizar isso então? Mi faz as honras!
MS: Merlin, o gatinho ta murcho...
GS: O que você queria? Tiramos quase tudo!

Ty entregou as ataduras para Mi e ela começou a enrolá-lo. O gato vazio parecia um pano na mão dela, quase dobrando quando ela o levantava. Depois de conseguiu enrolar todo o gato, sem falhas, ela o deitou na mesa. Ficamos os três olhando do gato pros vasos, ate que resolvi falar.

GS: E agora? O que fazemos?
TM: A enciclopédia é você, o que se faz depois de mumificar o morto?
GS: Bom, tem uma cerimônia para colocar ele no sarcófago, mas acho que não dá pra fazer isso aqui.
MS: Vamos enterrá-lo nos jardins então?
TM: Parece razoável... Vamos!

Limpamos a sujeira na sala e seguimos para os jardins carregando o gato e os vasos dentro dos casacos. Muitos alunos ainda transitavam por lá, então não estaríamos encrencados por andar pelos corredores. Chegamos a um local que parecia apropriado, afastado do lago e Ty começou a cavar. Informei-os de que era preciso lacrar o sarcófago improvisado e Ty fez um carimbo de lama, batendo ele na fechadura do baú que serviu de tumulo.

GS: Os egípcios não viam a morte como um fim, mas como um início de uma nova existência. Para a viagem ao além, cercavam-se de tudo o que tinham usado em vida. Móveis, alimentos e jóias eram colocados nos túmulos junto ao corpo mumificado... – falei distraído, recordando um trecho do livro.
TM: Ah? Como é o negocio aí lobão?
MS: Temos que fazer oferendas ao gato?
GS: Não oferendas, ele não é um orixá. Mas normalmente eles levam coisas que usavam em vida para o outro lado.
TM: Ah entendi! Alguém tem um novelo de lã ai?
GS: Acho que essa bolinha serve... – falei tirando uma bola de tênis do bolso e colocando no buraco.
MS: Bom, eu tenho um biscoito aqui. Não é de gato, mas acho que ele comeria assim mesmo, é gostoso!

Jogamos as coisas na cova e Ty enterrou definitivamente o gato, junto com os vasos. Não sei o que diremos ao professor François quando ele der por falta dos vasos sagrados dele. Acho que eram replicas, os originais devem estar no Louvre ou outro museu importante, mas ainda acho que ele iria querer guardá-los. Talvez não fosse uma boa idéia contar a ele onde os vasos estão... Deixamos os jardins bem satisfeitos, como se tivéssemos feito diferença em alguma coisa. Duvido muito que isso caia nos exames práticos de mitologia, mas até que foi divertido ser egípcio por uma noite.

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