*do subconsciente de Amaralina Bourbon de Montserrat*
Dentro de mim
Mora uma cigana
Rebelde, confusa,
Sequiosa de liberdade!
Sai de vez em quando a bailar
E suas mãos exprimem o que
Lhe vai na alma...
Essa alma cigana que
A nada se prende...
Ama a liberdade e isso é
A razão de seu viver...
Tem ainda outra cigana
A zelar pela romi que dança
O bailar da alegria
Enquanto esta sangrando
Seu próprio coração...
Ah, coração cigano,
És ainda tu que me fazes voltar
Em busca desse louco sonho meu!
Liberdade, liberdade `a alma
Aprisionada no preconceito humano!
Quem prenderá o pássaro que nasceu
Para voar, em companhia do vento?
Ah, coração cigano,
És ainda tu que me fazes voltar
Inda uma vez mais...
Depois da tempestade, o dia sempre acaba amanhecendo com o sol brilhando no horizonte, por mais longa que tenha sido a noite de espera. Ali estava eu, às margens do Rio Sena, e respirava minha tão sonhada liberdade. Liberdade essa que duraria pouco mais de duas semanas, mas o que me interessava era o presente, rever meu tão querido pai e meus extraordinários irmãos. Nenhum deles imaginava quanta falta me faziam. Eu fiz questão de vestir os trajes que meu coração clamava, e que eram tantas vezes rejeitados na escola onde eu vivia. Usava a saia vermelha que Pablo mandara no meu último aniversário, uma bata branca, longos brincos e vários colares de contas.
Assim que o barco de Beauxbatons desapareceu no grande rio, avistei os conhecidos e tão amados rostos. Eles não haviam esquecido de mim. Ellyat e Johann estavam à minha espera. Kalinka também estava com eles, acompanhada do esposo e de Meneghal, seu primeiro filho, nascido há pouco mais de um mês. Senti meu peito arder de tanta felicidade, e corri para abraçá-los. Ellyat me tomou em seus braços e me rodopiou no ar, como fazia desde os tempos mais primórdios, quando eu mal conseguia equilibrar-me sobre as pernas. Kalinka, a maior e melhor amiga que Abraim poderia ter colocado em meu caminho, abraçou-me com ternura e seu sorriso esplendoroso manifestava a alegria de sua alma. O bebê dormia tranqüilamente em seus braços, e eu dei-lhe um beijo na testa, pedindo aos deuses que o tornassem um homem forte e valente. Então, olhei para Johann. Meu irmão querido, metade de minha alma, aquele que conhecia todos os meus segredos e em quem eu depositava toda minha admiração e meu mais sublime amor. Ele colocou uma coroa de flores brancas em meus cabelos e me envolveu em seus braços, o que fez uma imensa paz tomar conta de meu corpo. Era como estar no céu. Como se minha mãe estivesse comigo. Finalmente eu me sentia protegida.
Ellyat tomou minha mochila e a pôs nas costas. Estava entusiasmado, querendo saber tudo sobre a escola. Era ele o responsável por me manter em Beauxbatons. Meu irmão vais velho dedicava todos seus esforços e preces à minha formação. Demonstrava um orgulho imenso, quase que veneração, pela magia que havia em mim, e não poupava esforços para que eu atingisse a perfeição. Eu tinha consciência que deveria terminar a escola em consideração a ele. Mesmo sabendo que minha vida, minha alma, pertencia ao meu povo cigano, eu iria estudar tudo que fosse preciso. Chegaria até o fim, daria tudo de mim para ver o brilho nos olhos do meu irmão. Brilho que expressava sua luta, sua fé, sua dedicação... Sua missão cumprida.
Johann caminhava ao meu lado, um de seus braços em torno de meus ombros. Conforme manda a tradição cigana, as mulheres da tribo não devem andar desacompanhadas. Estão sempre submetidas à proteção do pai, do esposo, ou, nesse caso, de um irmão. Ele tinha uma vivacidade fervorosa no olhar. Seus olhos, que para mim sempre foram a janela de sua alma, contagiavam todo o meu ser por uma estranha e atordoante alegria.
Kalinka seguia ao meu lado, e nós conversávamos como há muito não fazíamos. Havíamos crescido juntas, e no entanto, ela havia permanecido na nossa cultura, no nosso povo. Seguira obendientemente a tradição, e casara-se aos quatorze anos com o noivo eleito por seu pai. O homem que caminhava ao seu lado a amava intensa e verdadeiramente. Podia ver em seu semblante que minha irmã de alma era feliz. Tinha nos braços o maior presente que uma mulher pode ter. Ali, com pouco mais de cinqüenta centímetros, dormindo o sono dos anjos, estava o fruto de seu amor, aquele que seria para sempre a prova viva de sua união, que levaria às gerações futuras seu sangue e sua conduta. Para minha alegria, fiquei sabendo que nosso povo estava acampado no sul da França, quase fronteira com a Suíça. Não pude conter o ritmo do meu coração. A cidade onde eu havia nascido.
Pouco mais de três horas de viagem nos levaram a Le Chambon-sur-Lignon. Uma lágrima rolou de meus olhos e misturou-se à poeira na estrada. Eu era fruto daquela terra, todo meu destino havia sido traçado ali, no momento em que mamãe me entregou ao mundo. Logo avistei o acampamento. As tendas armadas, os panos coloridos e o som da nossa música eram inconfundíveis. Eu via, ouvia, respirava e revivia minha infância. Meu pai estava no meio da estrada, com os braços abertos, sorrindo para mim. Johhan soltou meus ombros e eu corri ao encontro do meu rei. Lancei-me em seus braços como um cordeirinho que acaba de fugir da presa e refugia-se no calor do ventre materno. A respiração de meu pai era ofegante, e as rugas de seu rosto imediatamente se desfizeram. Vi meu pai, meu herói, meu rei dos reis rejuvenescer duas décadas frente a mim. Eu me sentia extasiada, plena. A princesa voltava ao abrigo de seu pai. A pequena rainha estava de volta ao seu império. Se Abraim me chamasse para sua companhia naquele exato momento, eu ria realmente feliz.
Mas Abraim sabia que aquilo que eu achava ser a felicidade perpétua, na verdade era apenas uma finíssima fatia do imenso bolo que o destino havia reservado para mim. Fui recebida pelo meu povo com alegria e entusiasmo. Não cabia em mim de contentamento. Percebi que cada um deles tinha na mente uma recordação minha, e todos ansiavam pelo meu retorno.
Faltavam apenas dois dias para o início da comemoração do Natal. O Natal é a festa mais importante do ano, e a cerimônia dura três dias. Os preparativos já haviam começado. Muita comida, bebida, música, dança, rituais. O mais importante deles era o Ritual do Renascimento, que acontece exatamente à meia noite do dia 24 de dezembro. É neste ritual que todas as almas ciganas se encontram e se renovam. Vão ao céu e atingem o limite da perfeição que é concedida aos humanos. O Ritual do Renascimento consiste em uma dança de entrega. Entrega do corpo, da alma e do coração.
A cada ano um casal é indicado pelos superiores da tribo para a execução dessa dança magicamente magnífica. Neste Natal, os escolhidos foram Johann e eu. A euforia tomou conta de minhas veias. Mesmo estando há tanto tempo afastada dos meus entes queridos, carregava em meu espírito cada nota entoada por aqueles que eu tanto amava. A dança era minha vida, tudo que eu ansiava e desejava em minha existência. A melodia que invade a alma, penetra cada poro de nossos corpos, tornando-nos livres e beirando a imortalidade. Eu iria dançar novamente com meu mestre, meu par, meu irmão. Aquele que conhecia meus medos e meus desejos. Meu anjo da guarda. E estava sendo agraciada por poder partilhar com ele este momento único em minha vida.
Cada cigano, durante o ritual, recebe uma graça de Abraim, o imaculado rei dos céus. Para alguns, ele promove a fartura. Para outros, a harmonia. Outros recebem a tranqüilidade ou a sabedoria. Outros são tomados por um infortúnio sentimento de pesar, e sentem a necessidade urgente de compartilhar seus feitos com aqueles que os rodeiam. E outros sentem o peito arder em chamas, e descobrem o verdadeiro amor. Era isso que eu esperava. Não havia conseguido apagar da memória as frases daquela cartomante em Paris. Estava angustiada, e esperava que Abraim me concedesse a virtude de perceber o amor que estava tão próximo a mim.
Já era muito tarde quando me recolhi. Sentia-me viva novamente, em paz com meu eu interior. Fiz as preces a Abraim, pedi a benção a meu pai e passei muito tempo olhando as estrelas que brilhavam impetuosamente no céu. Adormeci sentindo as mãos de mamãe acariciando meus cabelos, e vi seu rosto sorrindo para mim. Sua alma entoava um cântico de graças. Eu estava em casa.
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N.A.: O poema citado no início do texto chama-se "A um coração cigano", retirado do orkut, da comunidade "Coração Cigano".
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