Do subconsciente de Amaralina Bourbon du Montserrat
AMOR CIGANO
No silencio da noite,
No brilho das estrelas
Recordei-te...
Abri a porta da imaginação
A brisa da noite de leve
Tocou em meu coração
Trazendo de volta as lembranças
De um passado remoto...
Meio que entre nuvens
Entre uma verdade e um sonho
Encontro-me em seus braços
Sinto seu beijo em meus lábios
As estrelas e a lua são testemunhas
Desta noite de amor tão intensa
De um amor tão verdadeiro
Tão real, sinto suas mãos
Tocarem-me como num toque
Do destino, como num passe de mágica
Num mundo cigano, sem enganos
Sem tempestades, somente nosso amor
Noite após noite perdida em seus braços
Sem querer que o tempo passe...
Foi assim que nos conhecemos...
Como um passe de magia,
Ao som do vento e a brisa da noite
Nos envolvemos e nos amamos...
Como em uma vida cigana...
Um destino duas vidas...
Quem sabe um dia...
Como dizem os ciganos
Nos encontramos a rumo...
De nosso destino...
Acordei com Pablo ao meu lado, cutucando levemente meu braço. Demorei alguns instantes até voltar do sonho, daquela lembrança incauta de uma outra vida que brotara sem pedir licença em minhas entranhas. Abracei meu irmão, há quase dois anos não nos víamos. Pablo é domador de elefantes, e nas últimas férias da escola, ele estivera nas longínquas savanas africanas. Estava com 21 anos e havia se tornado um belo cigano, o meu irmão. Conversamos alguns instantes, mas logo fomos interrompidos. A festa de Natal já havia começado no dia anterior, e hoje era o dia do Renascimento. Esta noite o ritual seria mais uma vez executado, e os cânticos que remetem nosso clã aos mais primórdios antepassados soariam em nossos ouvidos. O Ritual do Renascimento teria início às onze horas e trinta minutos, e durante meia hora Johann e eu dançaríamos sob as mãos de Abraim, oferecendo a ele nossas almas e pedindo estima, proteção e graças a todo o nosso povo. A cigana-mãe estava de pé à nossa frente, e ordenou a Pablo que me deixasse sozinha.
Estava tudo preparado. Todo o povo estava em êxtase, as mulheres cozinhavam, as crianças cuidavam da decoração, os homens afinavam os instrumentos e preparavam as oferendas. Johann e eu havíamos passado os dois dias que antecederam o início das comemorações ensaiando nossa cerimônia de consagração. O primeiro dia de festa foi esplendoroso. Havia muita comida, música e dança em torno da fogueira. A alegria era visível em cada um dos rostos ali presentes. Tudo era muito bonito. Quando faltavam dez minutos para a meia noite, as mulheres mais velhas do nosso clã me levaram para dentro de uma tenda branca. Johann foi levado por nosso pai e pelos velhos conselheiros a uma tenda semelhantes, do outro lado do acampamento.O retiro para a consagração estava começando.
Passei a noite ali, acompanhada de Kalinka e mais duas mulheres, a sacerdotisa e a cigana-mãe da nossa tribo. Vesti uma túnica branca e um véu foi colocado sobre a minha cabeça. Fiz vários exercícios de meditação, com a ajuda de pedras rúnicas e incensos, entoei mantras e recitei orações, buscando a pureza e a paz da minha alma. As mulheres murmuravam preces em voz baixa enquanto eu cantava. Senti a luz das estrelas tomar posse do meu corpo, e entrei em transe. Elas então me deixaram sozinha. Era o momento da entrega, momento em que o cósmico passava a viver em mim e meu espírito viajava pelo céu. Depois disso, adormeci.
Fui despertada pela presença de Pablo que, entretanto, não pôde permanecer comigo mais de três minutos. A cigana-mãe havia permitido a entrada dele na tenda da purificação por alguns poucos instantes, apenas para que pudéssemos nos ver. Ela o conduziu para fora, então, e me deu um grande cálice fumegante para beber. Ao contrário do que imaginei, porém, a bebida era extremamente fria. Senti minha língua arder, mas continuei a tragar o líquido sob o olhar intransigente da cigana.
Tão logo esvaziei o cálice, senti meu espírito abandonar o corpo novamente. A velha cigana entoou um mantra de libertação aos meus ouvidos. A beberragem agora aquecia minhas entranhas, e eu experimentei sensações que jamais imaginara sentir, mas que sem dúvida me levaram ao êxtase, a uma profunda e inigualável paz interior.
Eu podia ouvir a música e as vozes do meu povo que festejava lá fora. Entretanto, tudo aprecia tão distante, tão insignificante frente à liberdade espiritual incondicional a que eu estava submetida, que não hesitei em prolongar ao máximo o tempo do retiro.
Às nove horas da noite, Kalinka e a sacerdotisa voltaram à tenda, com os braços repletos de objetos das mais diversas qualidades. O retiro para a consagração culminava em um banho em pétalas de rosas brancas. Elas banharam o meu corpo, deram-me uma taça de leite de cabra para beber, retiraram o véu branco da minha cabeça e cuidaram dos meus cabelos. A tradição assim mandava, eu deveria manter meu subconsciente o mais afastado possível das coisas mundanas. O perfume das rosas impregnou-se de tal forma à minha pele que eu duvidada que algum dia deixaria de senti-lo em mim. Era o um odor agradável, inebriante. A cigana-mãe trouxe o vestido que eu deveria usar, branco e cravado de cristais. A saia longa, fundamental nos costumes ciganos, trazia uma inscrição rúnica bordada com diamantes. Kalinka ocupou-se em escolher as jóias que eu usaria. Brincos, colares, pulseiras e anéis, todos do mais puro ouro, uma das maiores riquezas do clã.
Fui então conduzida para o exterior da tenda, onde quatro homens, entre eles meu pai, Pablo e Ellyat, carregavam a liteira de madeira nobre. A sacerdotisa pôs-me sentada na condução e os homens a ergueram sobre os ombros. Eu fechei os olhos enquanto vencíamos o pequeno percurso até o centro do acampamento. Só tornei a abrir os olhos quando o silêncio que havia se estabelecido foi quebrado pelos vivas que festejavam a minha chegada. No Natal, os ciganos põem a mesa no chão, com uma toalha branca. Havia uma infinidade de fartos manjares e as mais diversas guloseimas sobre a toalha.
Uma grande fogueira marcava o centro do acampamento, e todo o povo cigano encontrava-se em torno desta, deixando livre uma faixa de aproximadamente 5 metros, formando um imenso circulo humano. De pé, ao lado da fogueira, estava Johann, meu mestre, companheiro, amigo... irmão. Ele trajava magníficas vestes também brancas, e havia em sua camisa, como no meu vestido, a incrustação de diamantes formando uma expressão rúnica digna daquele momento. A liteira foi colocada no chão e então o silêncio novamente tomou conta do local. Apenas o crepitar das chamas podia ser ouvido. Lentamente Johann se aproximou e, depois de curvar-se, estendeu a mão direita, que eu aceitei com um sorriso.
Nossos olhos se encontraram por alguns instantes e vi que meu irmão também sorria, orgulhoso. Os címbalos retiniram e o som da orquestra ecoou. Johann conduziu meus passos em uma espécie de cumprimento a todo o povo reunido. Depois, como em oferecimento a Abraim, ele me tomou nos braços e, com um giro, lançou-me às alturas. A dança cigana é repleta de encanto, liberdade e espontaneidade. Cada movimento, cada rodopio é composto de sentimento, levado pelo ritmo dançando a vida, causa um enorme fascínio a todos que a apreciam. Traduzindo emoções em movimentos, o Rito do Renascimento deixa sua marca pelos seus mistérios, pelo encanto, pela magia, deixando exalar uma energia cativante e contagiante, através dos dedos das mãos, da sedução do olhar, dos giros, das saias, da batida dos pés, das castanholas ao som dos violinos, acordeon, pandeiros e violões. É a dança cigana, é dança presente, é dança viva! Não há quem não seja contagiado pela sua energia, seu magnetismo, sua força.
No fim, quando apenas o som do violino e dos címbalos eram ouvidos, denotando a entrega da alma e a ligação espiritual entre Abraim e cada um dos ciganos, os sinos da Igreja de Le Chambon-sur-Lignon foram ouvidos por toda a cidade. Um festival de luzes surgiu no céu, o que serviu para coroar o Ritual do Renascimento. Os olhares dos ciganos foram voltados para o magnífico espetáculo celeste. As doze badaladas retiniam com poder e glória, anunciando a aurora do Filho de Deus. Era meia noite. Johann me abraçava e olhava para o céu. Em um instante eu olhei seu rosto e ele encontrou meus olhos, e sorriu. Senti meu peito arder em chamas, como se meu coração fosse consumido pela fogueira à nossa frente. "Amor, amor meu. É teu. Somente teu. O meu amor". A décima segunda badalada soou. E só então eu entendi o que a cartomante havia me dito. Ali estava o meu amor. Eu havia pedido a Abraim que me fizesse conhecer o amor que estava tão próximo a mim. E Abraim acabava de realizar o meu desejo. O amor realmente estava bem à minha frente. Johann. Meu próprio irmão.
Vida minha, vida minha
Meu amor cigano
Como posso me enganar
Fingir que não te amo
Senti as lágrimas tomando conta dos meus olhos, e o pranto inundou cada milímetro da minha alma que até então estava em paz. Sentia uma dor terrível, profunda, incomparável. Era piro do que ter mil facas rasgando minha carne. Meu coração ardia, e meu espírito também. Johann me olhou, percebeu minhas lágrimas e, pensando que eu estava emocionada por termos cumprido o ritual, enxugou meus olhos com suas mãos e beijou meus cabelos. Senti as trevas dentro de mim, o calor do amor que eu tanto ansiara por aquecer meu coração transformava-se em um castelo de gelo. Culpa. Frio. Arrependimento. Medo. Me desvencilhei dos braços de meu irmão, e corri para a tenda de meu pai. A pequena rainha transformava-se em sapo. Eu era a criatura mais suja e indigna sobre a face da Terra. Tinha vergonha do que acabara de descobrir. Mas finalmente tudo fazia sentido. Era por isso que eu não conseguia prever o meu próprio futuro. O destino havia me pregado uma peça, e eu tinha mergulhado nele sem precaução alguma. Percebi que a linha do amor na palma da minha mão estava mais nítida, mas se confundia com a linha do destino, e as duas entrelaçavam-se formando uma terceira. A linha da morte.
Mesmo sem querer eu vou lembrar
Coisas impossíveis de apagar
É pra mim difícil entender
A vida sem você
Johann continuaria sendo meu irmão, mestre e amigo. Mas somente isso. Nunca poderá ocupar o lugar que meu coração clama. Temos o mesmo sangue nas veias, e cultura nenhuma, nem mesmo a cigana, permite o casamento entre irmãos. Essa idéia – irmãos – causava-me náuseas. Seríamos apedrejados até a morte. E eu passaria pelo que fosse preciso pra ver meu irmão vivo.
Vida minha,vida minha
Não me deixe agora
Logo quando eu mais
Preciso de você
Diz pra mim que não deixou de
me querer
Este seria o meu segredo. Ninguém no mundo jamais iria sequer desconfiar na tempestade que se formava dentro de mim.
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N.A.: Poema “Amor Cigano”, de autoria de Fafá Lima; Música “Amor Cigano”, de Fafá de Belém
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