A primeira semana dos jogos correu tranqüila. Claro, se levarmos em consideração que o ‘tranqüilo’ abrangia muitas vezes a comunicação por mímicas ou as brigas em jogos que ocasionalmente ocorriam... Mas, tirando pequenos desentendimentos e controvérsias, os alunos de Durmstrang nos receberam muito bem e Beauxbatons disputava de maneira quase empatada a primeira colocação no quadro de medalhas.
Com as meninas da República Avalon eu também não tinha o que queixar. Logo no dia em que chegamos, elas nos mostraram toda a casa e nos acomodaram em beliches espalhados pelo último e maior quarto da casa. Já tinha trocado uma dúzia de palavras com cada uma delas na medida do possível. Algumas falavam inglês, o que facilitou muito nossa comunicação.
Mas o mais incrível mesmo estava sendo o espírito de equipe, participação e determinação que os ‘filhos de Madame Máxime’ estavam demonstrando nas competições. Sempre que tinha um tempo entre meus treinos e jogos de xadrez, e nossos treinos de canoagem, eu ia assistir os jogos com participações francesas e devo admitir: entramos para vencer. Mesmo que não ficássemos com o ouro em todas as competições, saíamos com a cabeça levantada e determinados a melhorar o empenho na próxima chave, ou próxima partida... E a torcida, liderada principalmente por Ian, Samuel, Bernard, Dominique, e cia. ilimitada só ajudava ainda mais esse espírito vencedor.
Na manhã da final de xadrez acordei cedo. Só uma pessoa estava acordada no quarto: Anastácia Ivanovich. Na frente dela, um tabuleiro de xadrez já parcialmente vazio e ao lado, na cama, restos de torres, bispos, cavalos e peões estraçalhados da luta.
- Bom dia. – disse sentindo meu estômago afundar em desaprovação. Ela seria minha rival na final de xadrez e parecia obcecada enquanto assistia a rainha branca ser decepada por um peão negro, que declarava ‘xeque-mate’. Sorriu vitoriosa e se virou para mim.
-Ah, Anabel! Bom dia! – reparou as peças e fechou o tabuleiro se espreguiçando. Estava parecendo muito confiante e isso me fez sentir náuseas. Estivera dormindo enquanto ela repassava as jogadas de xadrez!
Sentindo que não suportaria perder a final de xadrez para ela, me troquei depressa, apanhei meu tabuleiro e saí da república em direção ao castelo. O Salão Principal já estava cheio de madrugadores de diferentes fusos horários que conversavam. Tomei café rapidamente e segui para a sala de xadrez. Bernard estava por ali arrumando cadeiras e tabuleiros. Sorriu a me ver e veio me dar um beijo.
- Está nervosa? – ele perguntou enquanto nos sentávamos. Balancei a cabeça negativamente rápido demais e ele entendeu que estava sim, muito nervosa, mas não queria demonstrar isso. Riu. – Você vai se sair bem, ok? Foi bem em todas as eliminatórias! Venceu da Durigan ontem com 15 minutos de jogo! É um recorde!
Tentei sorrir, mas não consegui. Minha boca tinha um gosto amargo e tenso. No dia anterior, venci da Lavínia na semifinal, realmente muito rápido. Mas por que ela avistou Miyako e o amigo dela abraçados na arquibancada e não conseguiu perceber minha jogada com a torre e o bispo encurralando sem qualquer esperança o rei. Mas eu sabia que Anastácia seria uma concorrente difícil. Sabia que era concentrada no tabuleiro e não na platéia e sabia que tinha treinado um bom tempo de manhã, coisa que eu não tinha feito!
Bernard balançou a cabeça e me abraçou quando contei que ela parecia bem confiante de seu desempenho. Sentindo que eu precisava de ajuda, topou jogar uma partida contra mim, até a hora da final... Talvez ele tenha me deixado o vencer de propósito, para que eu também me sentisse confiante, ou talvez ele realmente tenha dado bandeira com a rainha a colocando de posição para ataque do meu cavalo, mas de qualquer maneira eu agradeci ter vencido essa partida, e quando as pessoas começaram a tomar as arquibancadas ao redor, falando agitadas, esvaziei minha mente da pressão, respirei fundo e me sentei de frente para Annia, que também parecia estranhamente despreocupada. A final iria começar.
°°°
Já se passara uma hora de partida, de acordo com o cronômetro que Bernard colocara em cima de nossa mesa. Até agora eu tinha eliminado três bispos, uma torre e um cavalo de Annia, mas ela tinha eliminado os mesmos três bispos e minha rainha! Ela estava levando a melhor...
A platéia estava em um silêncio fúnebre. De um lado, uma massa de torcedores azuis. De outro lado, um mar de estudantes vermelhos. A cada peça que eu eliminava de Annia, Samuel e Ian levantavam uma hola silenciosa do lado azul, e para não deixarem barato, a cada peça que Annia tirava de mim, suas amigas começavam um contra ataque com aplausos silenciosos, batendo as mãos no ar. Bernard estava ao lado do tabuleiro observando cada um dos nossos movimentos. Parecia totalmente indiferente quanto à sua preferência, embora eu visse que estava sendo difícil para ele segurar o riso cada vez que a torcida azul se levantava para me saudar. Annia observou eu ordenar minha torre em direção ao seu bispo que protegia o rei e ficou apreensiva. Ficou um minuto em silêncio observando as peças e depois no ar, começou a mexer com a mão as possíveis jogadas. Quando finalmente pareceu se decidir, segurou o bispo. Mas tirou a mão rapidamente, parecendo ter se arrependido, e foi com a mão em direção à rainha. Bernard parou sua mão no ar a olhando sério.
- “Piece touche, piece joue” – disse como se estivesse discursando. Annia balançou os ombros confusa e traduzi o francês.
- Peça tocada, peça jogada. Quer dizer que se você coloca a mão na peça, tem que movimentá-la.
Ela olhou de mim para Bernard, deste para seu bispo, e por último para sua rainha, com olhos cobiçosos. Segurou o bispo novamente e o movimentou, livrando-o do caminho. Sorri.
- Xeque-mate. – disse finalmente.
Minha torre avançou sobre o rei e se curvou como uma reverência, então, se lançou sobre ele o derrubando com força no tabuleiro. A peça se partiu ao meio. Bernard levantou meu braço ao ar e uma chuva de torcedores azuis saltou aos berros. Me levantei radiante e abracei apertado Bernard enquanto ele me girava no ar. A medalha de ouro era minha!
°°°
- Allons efants de la Patrieee...
- ... Lê jour de gloire est arrivééé!!!
Samuel e Ian cantavam aos berros o hino da França enquanto dançavam ao redor de mim. Todos os meus amigos se aglomeravam ao meu redor me abraçando e dando parabéns. E logo após a cerimônia de entrega de medalhas, eles me levantaram, empolgados, e me carregaram até os jardins, já tomados de uma claridade cinzenta e gélida.
Paramos todos na beira do lago. Ian, Samuel, Marie, Bernard, Viera, Dominique, Mad, Manu, Anne, Brenda e Chris ainda cantavam o hino da França. Isa anotava detalhes da partida para o jornal e rádio de Beauxbatons.
- O mais engraçado foi assistir Bernard com aquela pose indiferente barrando a jogada da menina. Estava louco para roubar uns peões dela! – Ian falou e todos caíram em gargalhadas. Bernard sacudiu os ombros.
- Regras são regras! “Piece touche, piece joue”. – ele disse satisfeito. Todos riram novamente.
- Ok, one down, one to go! – disse sorrindo e observando um caiaque solitário desbravar as partes não cobertas por gelo do lago de Durmstrang. Isa, Brenda e Anne acompanharam meu olhar e pareceram murchar.
- Hoje não, Bel, desiste! – Brenda disse vetando, mas com um tantinho de súplica na voz. Ela estava com as mãos enfaixadas depois da prova de atletismo. – Amanhã é a minha final de saltos e eu não posso forçar meu braço hoje.
- Não disse que vamos treinar hoje! – disse ofendida e Anne soltou um suspiro aliviado. – Estou só dizendo que vamos ganhar essa medalha de ouro na canoagem também! E a partir de segunda-feira, tratem de se preparar, pois vamos reforçar ainda mais os treinos...
- Ok, marechal, já entendemos. – Isa guardou a pena, e o pergaminho nos encarando. – Bom, agora se me dão licença, Jaeda Smith da Escola Texana quer me entrevistar sobre Ben O’Shea. E também, depois do que fiquei sabendo, essa entrevista vai vir a calhar...
- O que você ficou sabendo? – Manu perguntou se sentando mais reta. Viera girou os olhos pra ela. Sorri.
- Semana que vem todos saberão. Semana que vem. Até mais!
Isa balançou o cabelo para trás e se levantou. Saiu andando levemente, como se estivesse sobre nuvens. Ficamos a observando por uns minutos em silêncio até Ian rir.
- Sabem, acho que a Isa está aprontando alguma coisa! – disse e concordamos rindo.
Isa andara obcecada em perseguir Ben O’Shea por todos os lugares que conseguisse, e eu tinha certeza que o que fosse que ela tinha descoberto, não seria nada muito educativo...
Continuamos um tempo fazendo o balanço da semana. Dominique e Manu nos contavam as provas que tinham assistido com exclusividade e nos faziam rir. Já tinha me esquecido o quanto era bom gastar um tempo sem fazer nada, além daquilo: com amigos, conversando, rindo, sem preocupações com deveres e exames. E futuro.
Senti um cutucão no meu ombro e me virei. Bernard que estava me abraçando, também se assustou e se virou para trás. Era Ulisses. Senti o rosto queimar enquanto ele sorria para mim.
- Parabéns pela medalha, Bela. Ótima partida! – disse poetizando. Bernard deu uma tremida e me apertou.
- Obrigada Ulisses. – disse sorrindo educadamente, mas me sentindo extremamente constrangida.
Ele sorriu mais uma vez e se afastou com um amigo de Beauxbatons. Bernard se virou para mim.
- Bela? – perguntou ironicamente como quem está se divertindo, mas não havia sorriso no rosto dele. Balancei os ombros, indiferente.
- Ele é grego também, novato. Máxime me pediu que o ajudasse em algumas matérias, para ele se adaptar... Não tenho culpa se ele me chama de ‘Bela’.
- Folgado. – Bernard disse zangado e Dominique, Samuel, Ian, Viera e Chris concordaram com ele. Levantei a sobrancelha.
- Bobos.
Bernard continuou me olhando sério e então sorriu e me abraçou novamente, percebendo que não seria um bom negócio discutir por causa de um novato maluco. O problema é que Ulisses não saiu da minha cabeça o resto da tarde. Se eu achava que Isa estava aprontando alguma, eu tinha certeza que Ulisses também tinha um plano. Só precisava descobrir qual era...
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