Monday, January 08, 2007

Você pensa que cachaça é água? Cachaça não é água não!

Da falha memória de Gabriel Graham Storm

Depois de passar o Natal no frio da Suécia, voltamos ao Brasil para passar o Reveillon. Estávamos em Búzios, na casa de praia da minha mãe e do meu padrinho, e meus primos Theo e Shane tinham vindo também. Era a ultima semana de férias e hoje a noite seria minha primeira saída à noite sem minha mãe atrás. Eram quase 20hs quando meus primos e eu saímos de casa e nos reunimos com meus amigos de infância do condomínio de Búzios, saindo em direção à Rua das Pedras.

A gangue já estava toda reunida na entrada do condomínio nos esperando e nosso destino era a praça da cidade, onde toda a movimentação acontecia. Várias barraquinhas vendendo caipifruta de todos os sabores possíveis e imagináveis estavam montadas por toda a extensão da praça e paramos em uma delas, nos acomodando. E foi aí que tudo começou a desandar.

- Vamos fazer uma disputa, quem consegue beber mais sabores em uma hora! – Sandro sugeriu fazendo sinal para o dono da barraca trazer todas as garrafas pra nossa mesa
- Ahn eu não bebo essas coisas... – falei e todos os meus amigos me olharam com expressões chocadas
- Pra tudo tem uma primeira vez! – Breno empurrou um copo de batida de morango na minha mão sem cerimônias
- Vai Gabriel, você consegue! – eles falavam animados, já meio bêbados – vira, vira, vira!

Respirei fundo e virei o conteúdo do copo de uma vez só na boca. A cachaça na batida desceu queimando minha garganta, mas o gosto não era ruim, muito pelo contrario. Talvez tivesse sido melhor se o gosto fosse semelhante ao de um aspargo. Eles começaram a competir pra valer quem agüentava mais tempo e eu entrei no embalo, provando de todos os tipos que o dono da barraquinha tinha para oferecer. Certa hora da madrugada Theo e Shane saíram para dar uma volta pelo resto da feira e levantei meio zonzo, me apoiando em Breno. Lembro pouco dos fatos que levaram a isso, mas lembro perfeitamente bem de estar em cima de um banco no meio da praça, falando em francês. Não, não faço idéia do que estava falando, só sei que era em francês!

Eu já devia estar começando a profetizar quando senti a mão de Theo me puxar do banco, seu rosto fora de foco. Ouvia muito barulho em volta, as vozes dos meus amigos se atropelando. Não conseguia distingui-las. Lembro de ter entendido Theo brigar com Shane e dizer para Sandro que estávamos indo embora, e que era bom que eles fossem também, pois a noite já rendera mais que o necessário. Andei um bom pedaço apoiado no meu primo, mas não fazia idéia de onde estava indo. Só comecei a assimilar as coisas quando vi, também fora de foco, o portão do condomínio. Os meninos vinham fazendo muito barulho atrás da gente e ouvi-os caindo na piscina quando chegamos perto da minha casa. Breno ligou o chuveiro e senti Chris me jogando debaixo dele. A água gelada me despertou na hora, mas não curou o porre.

- Droga, a tia Louise! – ouvi Theo falando
- Acorda Gabriel, por favor – Shane chorava do meu lado, completamente bêbado.
- O que está acontecendo aqui?? – ouvi a voz da minha mãe muito próxima. Mesmo bêbado podia dizer que ela estava braba
- Olha mãe, não põe a culpa no Theo, ele não tem nada a ver com isso – falei embriagado e vi minha mãe virar para o meu primo.
- Por que o deixou beber desse jeito, Theodore?? Era sua responsabilidade vigiar ele e o Shane!
- Mas tia, eu não, eu não... – Theo não conseguiu terminar a frase
- Para de chorar Shane! – mamãe falou irritada – Theodore vá chamar o seu tio, precisamos levá-lo ao hospital, ele vai entrar em coma alcoólico se não tomar uma injeção de glicose!
- Eu to bem, mãe, to bem... – falei com a voz mole e me desequilibrei em seguida, sendo segurado por ela.
- Cala a boca Gabriel! Não me faça bater em você nesse estado!

Não estava em condições de falar nada, e nem queria levar a porrada que ela estava se segurando para me dar, então fiquei calado. Shane estava aos prantos do meu lado e mamãe me jogou dentro do carro do tio Scott, dirigindo direto para o hospital mais próximo. Foi tudo tão rápido que foi difícil assimilar as coisas, e pouco me lembro do que aconteceu depois que entrei no carro. Só me lembro de Shane ao meu lado. ‘Você não vai morrer Gabriel, eu estou aqui’, ele dizia agarrado a maca onde me colocaram. O médico não deixou que minha mãe entrasse na sala, pois só podia um acompanhante e meu primo, bêbado, não dava indícios de que ia se afastar. A ultima coisa que vi foi uma agulha furar meu braço, por onde receberia a glicose. Depois apaguei e não lembro de mais nada.

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Abri os olhos e a claridade do quarto poderia ser capaz de me cegar, então os fechei novamente. Fiquei um tempo deitado de barriga pra cima e olhos fechados, tentando me lembrar dos fatos. Minha testa latejava, meu estomago se revirava, cada nervo vibrava. Merlin! Devia estar doente! Há uma onda de dengue no estado, devo ter contraído isso! Fiquei deitado em silencio, tentando enfrentar minha morte iminente, quando fragmentos da noite anterior me vieram à memória. Uma praça movimentada em algum lugar de Búzios. Alguma coisa chamada música jazz fusion. Uma bebida rosa forte em um copo de plástico – oh, náusea, oh, façam isso parar. Amigos me incentivando a beber mais. Discurso em praça publica. Um brinde, um gole, outro brinde. Oh, graças a Merlin! Não era um tipo raro de dengue hemorrágica, era apenas ressaca. Minha primeira ressaca.

Corajosamente me arranquei da cama, abrindo os olhos lentamente e procurando depressa meus óculos escuros, pensando em amenizar a claridade. As camas de Theo e Shane já estavam vazias, o que significava que provavelmente todos já estavam na sala esperando que eu descesse. Queria poder cavar um buraco, me enfiar nele e não sair nunca mais. Viver como uma toupeira debaixo da terra. Ao menos assim evitaria a claridade que estava prestes a danificar minhas pupilas. Agora posso dizer que entendo como se sentem os vampiros quando expostos à luz solar. Consegui juntar uma camisa com uma calça, de maneira que nada pedisse movimentos bruscos, e desci as escadas.

Estavam todos sentados na sala, ou vendo TV ou lendo o jornal, e todos, sem exceção, pararam o que estavam fazendo para me olhar quando pisei no ultimo degrau. Minha mãe estava na cozinha e apenas me lançou um olhar mortal antes de voltar à atenção ao que ela picava. Tio Scott estava ao lado dela e pude perceber que ele prendia o riso. Apesar de não querer me aproximar da minha mãe por um tempo, estava com fome e precisava comer alguma coisa. Ou ao menos beber água, estava morrendo de sede. Seria isso efeito da ressaca? Parece que sim, pois antes mesmo que eu pudesse emitir algum tipo de som, tio Scott estendeu as duas mãos, um comprimido em uma e um copo de água na outra.

- Para ajudar na dor de cabeça. – ele falou sério – e ainda tem pão no forno, melhor comer alguma coisa.
- Ok... – foi só o que consegui responder antes de sentir que minha cabeça fosse explodir se eu emitisse mais algum som
- Está com vergonha? – minha mãe falou de repente, me encarando – Pois se não está, deveria!

Mas não respondi. A conhecia muito bem para saber que quando ela me fazia alguma pergunta desse tipo, esperava uma resposta silenciosa. Abaixei a cabeça querendo sumir do mapa e engoli o remédio que tio Scott me deu, indo até o forno procurar o pão. Ia comê-lo puro mesmo, mas não ia atravessar novamente a cozinha e passar perto dela para buscar algum recheio.

- Vou fazer um chá pra você, Gabriel – tio Scott falou lendo meus pensamentos e me trazendo uma xícara de café e o pote de manteiga – vai ajudar na ressaca.
- Você não vai fazer chá nenhum! – mamãe tornou a falar, muito irritada – ninguém vai fazer nada, eu proíbo! Ele vai passar por isso sem nenhum tipo de facilidade.
- Deixa de ser ruim Louise! – tio Scott a enfrentou – vou fazer um chá pro menino! Sou o padrinho dele e quero fazer
- E eu sou a mãe dele e estou dizendo que ele não vai tomar porcaria de chá nenhum para aprender a não encher a cara na rua e dar vexame!

Tio Scott não respondeu mais, vendo que seria uma batalha perdida. Ele voltou à atenção aos legumes que picava na bancada da cozinha e mamãe ainda ficou me olhando com aquele olhar reprovador por um tempo, mas eu evitava contato direto, então ela continuou o que estava fazendo. Mate-me agora, Merlin! Mate-me...

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