Wednesday, January 31, 2007

Nada é por acaso...

A sineta do final das aulas soou. Arrumei minhas coisas na mochila e sai puxando Patrick de volta pro castelo, porque ele já estava prestes a babar.

SB: Você tem que aprender a se controlar! Me mata de vergonha toda aula de sereiano...
PB: Cara, você não percebe? Está dando certo toda essa minha insistência! A professora Mariska está tão doce comigo... Toda aula faz questão de me elogiar!
SB: Ela não faz questão de te elogiar! Ela te elogia porque você é provavelmente o único aluno do castelo que gosta dessa aula! O único que presta atenção nela, e o único que sabe falar alguma coisa em sereiano! Entendeu? Ela não tem segundas intenções!
PB: Você está com inveja Samuca?

Olhei para a cara presunçosa dele e comecei a rir. Ele franziu os olhos, mas não disse nada, e continuamos a andar para o castelo.

PB: Ok, talvez eu esteja delirando...
SB: Talvez não! Você ESTÁ delirando!
PB: ... Mas eu realmente penso que ela gosta de mim. Diferente! Sei lá, sexto sentido ou algo do gênero!
SB: Sei...
PB: Já sentiu isso com alguém? Tipo, olhar pro rosto de uma pessoa um dia e pensar “é ela”!
SB: Você está perguntando se eu acredito em amor à primeira vista?
PB: É, pode ser também. Você acredita?
SB: Quem sabe! Pode até ser que exista isso. Mas acredito também em amores utópicos.
PB: Eu soube que era ela desde a primeira vez que a vi...
SB: Lá vem... Isso é fome Patrick, isso é fome!

Íamos atravessando o jardim quando uma goles caiu quase em cima do meu pé. Peguei-a e olhei para o lado de onde ela vinha. Dois segundanistas acenavam pedindo a bola de volta, e depois de lançar um olhar repressor do tipo que diz “tomem mais cuidado com isso”, lancei. A bola fez uma trajetória alta, e quando ela estava prestes a cair, atingiu um obstáculo: acertou a cabeça de uma menina, que vinha andando distraída segurando um bocado de livros e olhando para o chão. Coloquei as duas mãos atrás da cabeça em choque, quando vi a menina cair, e então, sai correndo na direção dela.

PB: Acho que ela desmaiou! – Patrick teve essa inteligente conclusão quando parou ao meu lado ofegante, olhando a menina caída, os olhos fechados e inconsciente.
SB: Jura? Se você não tivesse aqui, eu nem pensaria nisso! – disse irritado, colocando a mão no rosto dela, gelado. – Me ajuda a levantar ela e levar para a enfermaria...

Ele me olhou atravessado, mas quando viu minha expressão impaciente, se abaixou e passou o braço esquerdo dela por cima do ombro, enquanto eu carregava o direito. Fomos empurrando ela até a enfermaria e Madame Magali olhou assustada ao nos ver entrar.

- O que houve? – enquanto deitava-a em uma cama.
SB: Acertei uma goles na cabeça dela... Sem querer, é claro! – disse me defendendo, quando Madame Magali me olhou enviesado. – Estava bem rápida, e fez um barulho alto...
- Certo, preciso fazê-la acordar... –disse enquanto remexia no seu armário de poções curativas.
PB: Vou jantar. Você não vem?
SB: Depois de atropelar a menina? Não. Vou esperar ela acordar e pedir desculpas...
PB: Ok. – Ele deu uma última olhada para ela, um breve sorriso cômico no rosto como se estivesse achando graça da situação, então desceu. Madame Magali se aproximou dela com essência de urtiga e colocou bem próxima do nariz. A menina fechou os olhos com mais força, e então se sentou de imediato, soltando um gemido de dor. Passou a mão na cabeça, massageando, e olhou ao redor.
- Se acalme, está tudo bem! Encoste no travesseiro um minuto, por favor. – Ela encarou Madame Magali espantada, então se encostou no travesseiro, ainda massageando a cabeça.
- Posso saber o que me acertou? – disse franzindo a testa. – Minha cabeça está prestes a explodir. - Levantei os olhos sem graça.
SB: Desculpa. Fui lançar uma goles de volta, e só vi você atravessando na frente dela quando não podia fazer mais nada...

Ela desviou os olhos de Madame Magali para mim, parecendo me notar pela primeira vez, sentado ao lado da cama. Depois, parou de massagear a cabeça.

- Tudo bem, eu sempre ando um pouco distraída mesmo...
- Tudo bem nada! A sorte é que atingiu a parte lateral da cabeça, porque se tivesse pegado no rosto, o nariz teria quebrado e talvez alguns dentes também! – Madame Magali respondeu brava, dando uma poção analgésica para ela. – Isso vai fazer sua cabeça parar de doer, e isso aqui... –disse estendendo um vidro com gel- é pra você passar na cabeça, aonde bateu. Sabe, para não ficar roxo e com um calombo. Quando quiser ir, está liberada senhorita Renault.

A menina concordou com a cabeça e Madame Magali saiu, indo falar com um menino deitado a duas camas.

SB: Samuel... – disse estendendo a mão, tentando sorrir. Ela me olhou tensa, mas então sorriu também, a apertando.
AR: Anne!

Nos encaramos uns segundos até ela abaixar os olhos constrangida. Então, voltou a massagear a cabeça.

AR: Você sabe jogar muito bem uma goles, sabia? – fazendo uma careta. Comecei a rir.
SB: É, não é à toa que sou artilheiro...
AR: Óbvio que você é! – ela sorriu me olhando.

Ficamos em silêncio e eu senti o estômago roncar. Me levantei olhando para ela.

SB: Acho que vou jantar... Só fiquei aqui pra te pedir desculpas e ver se você ia ficar bem, sabe? Me certificar que não vou enfrentar nenhum processo de agressão física!

Ela sorriu e concordou com a cabeça. Desci para o Salão Principal com o sorriso daquela menina na cabeça...

°°°

- Boa noite! – Professor Armand, seguido de Emily, entrou na sala de teatro olhando ao redor sorridente. – Ah, sinto cheiro de empolgação no ar, e tenho uma ótima novidade para todos!

Ian soltou um suspiro baixo, prendendo o riso. Tive que abaixar a cabeça para não notarem que eu também estava rindo.

- Dividimos os papéis da peça de teatro! Vou anunciar agora... Quando falar os nomes de vocês, por favor, se levantem e venham pegar os textos. Monsieur Lafayette...

Ian se levantou e apanhou o texto. Franziu a testa quando o abriu, frustrado. Se sentou e me lançou o bloco de folhas para olhar.

IL: Demétrio! Um dos protagonistas! Esse professor deve estar brincando com a minha cara... Demétrio! – ele repetiu, bufando.

Abri o texto dando uma lida e rindo dos diálogos, quando alguém bateu na porta. A turma se silenciou quando o rosto de Anne apareceu na fresta, envergonhada.

AR: Desculpa, eu me atrasei... – ela entrou na sala, fechando a porta em seguida. Emily sorriu.
- Ah Anne, que bom que você apareceu! E bem a tempo de receber seu texto! – Professor Armand também sorriu lhe entregando um texto. – Nossa “Hérmia”.

Ian engasgou e eu entendi o motivo na mesma hora. Seguindo o texto dele, Demétrio seria apaixonado por Hérmia, que seria apaixonada por Lisandro, que também seria apaixonado por Hérmia. Não tive tempo de escutar nada, pois escutei meu nome e fui pegar meu texto.

- Ah, que ótimo, que ótimo! São perfeitos!!! – Armand me analisou antes de me entregar o texto. Anne estava parada quase ao lado dele, conversando com Emily. Ela me olhou e então sorriu, imediatamente. Senti o rosto ficar quente, mas devolvi o sorriso. Armand puxou Anne e a empurrou de frente pra mim. Nos encaramos, e Armand nos analisava minuciosamente. – Hérmia e Lisandro! Ah, que lindo casal! Shakespeare ficaria apaixonado!!!

Quase engasguei. Ainda não tinha olhado para o texto qual era o meu papel. Lisandro! Merlin, era só o que me faltava! Armand puxou a minha mão e antes que pudesse fazer alguma coisa, ele encostou a minha mão na de Anne, que ele também puxava. Acho que eu já estava ardendo, só queria voltar para o meu lugar e tentar rir da situação toda, mas naquele momento eu segurava a mão de uma menina que eu tinha conhecido no mesmo dia, acertado uma goles na cabeça dela, e descoberto horas depois que seria meu par romântico em uma peça idiota!

- Ótimo, realmente ótimo! Podem voltar para o lugar de vocês! Peço a vocês dois que tenham um cuidado especial com o texto desses personagens. Provavelmente, terão que ensaiar algumas vezes mais, além das aulas de teatro, mas não será problema, será?

Não respondemos. Ficamos nos encarando um tempo, constrangidos, e quando ele soltou nossas mãos, nós a abaixamos e voltamos para o meio dos outros alunos. Ian e Marie riam dos papéis “Demétrio e Helena”, mas eu estava com a cabeça rodando para conseguir achar graça. Saímos da sala de teatro depois de uma hora mais ou menos. Patrick saiu ao meu lado, sorrindo.

SB: Você também foi convocado?
PB: É, eu já esperava... Estou enforcado em Mitologia! Mas sabe, meu papel não é tão ruim assim! Filóstrato, um diretor de festas da corte! – ele riu e me olhou desconfiado. – Esse desespero todo é porque você é um dos personagens principais, ou porque se sentiu abalado ao ver que sua princesa será a “doce Anne”? - Ele enfatizou a última expressão em um tom perto do meigo, e tive que rir.
SB: É claro que é por causa do papel! Não tenho motivo para me sentir abalado pela Anne, afinal, eu conheci ela hoje, e isso porque a fiz ir para a enfermaria hein? Ela ser meu par romântico é mera coincidência!
PB: Você adora confundir coincidência com destino...
SB: Já está você delirando de novo.
PB: Encare como quiser, meu caro! Delírio ou não! Mas eu acredito em amor à primeira vista, e não existem amores utópicos, e sim, amores mal resolvidos!
SB: Pegou essa fala do texto, Patrick?

Ele riu e balançou o ombro, continuando a andar. A situação toda passava pela minha cabeça, mas tinha decidido que não cairia nas loucuras do Patrick, pelo menos não por hora!

No comments: