Friday, March 23, 2007

Pais e Filhos

Desde o dia em que haviam descoberto um punhal na minha mochila, meus momentos de tranqüilidade se esgotaram. Não só o clima do castelo inteiro estava carregado de medo e ansiedade, como agora eu estava sentindo meus amigos cada vez mais distantes. Não que eles pensem que eu seja mesmo o lobo, mas as circunstâncias estavam ali, tão estampadas, que se eu estivesse com eles do outro lado do abismo, seria difícil não cogitar por um segundo a idéia de uma brincadeira de mau gosto.

Para completar a onda de maus presságios dessas últimas semanas, a Nox andava a um passo de ser desclassificada do campeonato, o que andava gerando uma terrível onda de desconforto e agressividade nos treinos e partidas. No último treino, Jardel começou a lançar desaforos para Bridget, e se nós não tivéssemos separado a tempo, talvez eles realmente tivessem avançado um contra o outro. Desde então, os treinos que deveriam estar com a taxa de aproveitamento bem maior para garantirmos a vaga, estavam cada vez pior e mais desgastantes.

A minha fuga nesses dias estava sendo nas aulas de teatro. Não que eu tenha mudado minha opinião sobre o quanto Shakespeare conseguira ser patético, mas lá eu podia ao menos dar umas risadas das interpretações desajeitadas de todos nós, e dos comentários cada vez mais “exuberantes” de Armand. O professor batia palmas tão euforicamente a cada cena, que por mais que nos sentíssemos ridículos falando aqueles textos, acabávamos acreditando que realmente deveria estar um pouco bom...

Como era sábado, aproveitei para acordar um pouco mais cedo e adiantar alguns deveres e trabalhos. Queria estar livre o resto do dia para dar uma caminhada pelos jardins ou talvez ir ao campo de quadribol. Quando cheguei ao Salão Principal porém, vi que todos os meus planos para aquele dia seriam cancelados. Meu pai e alguns outros membros do Ministério estavam com Madame Máxime conversando.

Sem saber se ia lá dizer um “oi pai, beleza?” ou se dava meia volta direto para o dormitório, fiquei parado uns segundos o encarando. Um dos bruxos que o acompanhava o cutucou de lado, e apontou a cabeça em minha direção. Se um segundo atrás eu tinha decidido ir embora, agora já não dava mais tempo. Meu pai interrompeu o assunto com Máxime e me encarou longamente, sua expressão cada vez mais funda e cansada. Senti o sangue gelar quando ele fez um aceno com o braço, mandando que fosse até lá...

IS: Será que posso usar o seu escritório por alguns momentos, Olímpia?
OM: Fique a vontade, monsieur.

Meu pai foi andando na frente, e permanecemos em silêncio até alcançarmos a sala de Madame Máxime. Ele esperou que eu passasse por ele, antes de fechar a porta. Permaneci em pé o encarando, até ele dar a volta à mesa e se sentar.

IS: Então... Vai permanecer em pé ou prefere se sentar? – disse fazendo um gesto para a cadeira atrás de mim, e me sentei. Ele me encarava rígido e sério como sempre. Depois de um ou dois minutos em completo silêncio, suspirou e começou a falar. – Não vou te perguntar se foi você ou não quem começou com essa brincadeira imbecil de assustar as pessoas com um assassino... Não sei como aquele punhal foi parar na sua mochila, e nem me interessa saber. Por mais que você seja irresponsável, continua sendo meu filho, e eu como seu pai realmente não acredito que você seja capaz de matar tão cruelmente duas pessoas só para pregar uma peça. Mas...
SB: Todas as evidências apontam contra mim, certo? Nós começamos a brincadeira sim, pai. Nós espalhamos sobre o lobo, só para causar medo... Mas as coisas saíram do controle e agora realmente existe um assassino, e ele realmente anda por aí matando as pessoas. É um aluno, temos certeza. Ninguém poderia ter colocado um punhal na minha mochila sem passar despercebido.
IS: Não poderiam ter sido os seus amigos? Que ainda não entenderam a gravidade da situação e continuam querendo brincar?
SB: Eu até pensei que sim no começo, mas agora eu tenho certeza que não foram eles. Eles estão sendo atacados. Esse lobo está indo atrás de nós, um por um. Acho que nós já conhecemos o limite de nossas brincadeiras...

Meu pai sorriu. Não um sorriso irônico como se estivesse dizendo “limite? Ah sim, é claro que vocês o conhecem...”, mas um sorriso diferente. Algo mais simplório, como um daqueles que damos de vez em quando ao lembrarmos uma cena do passado que nos fez feliz. Fiquei confuso, mas não disse nada. Deixei rir sossegado, imaginando no que ele estaria pensando naquele momento.

IS: Sabe Samuel... Quando eu tinha a sua idade, e estava prestes a me formar aqui, nesse mesmo castelo, eu já sabia exatamente como seria o meu futuro. Meu pai era muito mais rigoroso comigo, do que eu posso ser hoje em dia com você. Sempre me cobrou as melhores notas, o melhor comportamento, escolheu para mim o que ele julgava ser a melhor carreira. Mesmo que eu insistisse e insistisse que não queria ser Ministro da Magia, e sim um profissional em animais e criaturas mágicas, ele dizia: Não. Filho meu não nasceu pra morrer sozinho e pobre em uma cabana cheia de animais estranhos... Filho meu nasceu pra morrer em trono, deixando herdeiros!

Ele novamente sorriu daquele jeito anormal, e eu o encarava assustado. Nunca, desde que me entendo como gente, havia tido uma conversa mais ou menos civilizada com meu pai. Podíamos até começar civilizados, como começamos essa, mas no final sempre sobravam alfinetadas e gritos para os dois lados. E ouvir meu pai falando de sua adolescência, como se essa fosse a coisa mais apaixonante do mundo, era uma coisa insana demais para eu entender naquelas circunstâncias.

IS: Então eu me formei e me vi seguindo um sonho que nem de longe era meu... Estágios no Ministério, de departamento para departamento. Candidatura a Ministro que eu perdi feio. Trabalhos cansativos, quase 20 horas por dia, até a outra votação que eu finalmente me vi ganhando. Mas aí meu pai já não estava vivo para comemorar comigo o Ministério. E até hoje sua mãe me pergunta se valeu à pena ter dado tão pouca atenção a ela e a você, para cuidar de um sonho que nem meu era, que deveria ter sido enterrado com meu pai...
SB: Valeu? – a pergunta saiu sem que eu soubesse o porquê de ter saído. Estava tão assustado com aquelas revelações todas, que me vi perguntar bem depois de já ter perguntado.
IS: Não. Não valeu. Só hoje, depois de quase 15 anos no Ministério, que eu consigo entender o quanto desperdicei meu tempo. Poderia estar administrando um criadouro de hipógrifos. Adestrando testrálios, domesticando pelúcios. E no entanto, eu tenho que cumprir oito horas diárias no meu gabinete de Ministro da Magia, fazendo coisas totalmente monótonas, vendo a única mulher que eu amei na vida sendo feliz com alguém que soube dar o amor que ela precisava, e vendo meu filho ser acusado de assassinato, prestes a se formar! Sabe o que é engraçado, Samuel? É saber que por mais que eu tenha pensamentos tão primórdios como os do meu pai, de querer te ver tomando o meu lugar, eu sei que nunca vou ver isso. Porque você aprendeu a se virar tão bem sozinho, sem mim, que já sabe muito bem o que quer e o que não quer para a sua vida, e não vai deixar ninguém atrapalhar esses planos.

Ele se calou. Os olhos fundos me encaravam de uma maneira tão doce, tão paternal, como eu nunca os tinha visto. Não sorria, mas sua boca tinha uma curva exata de admiração. Sustentei o olhar dele, acho que estava em transe. Ele se levantou e foi até a janela olhar os jardins e os alunos que caminhavam por ali.

IS: O que você quer ser quando sair daqui Samuel?

Aquela pergunta me surpreendeu mais do que qualquer outra coisa. Eu não sabia o que responder. Senti minha boca seca, em pó.

SB: Bem eu... Não sei.
IS: Sabe sim. É claro que você sabe. Seus olhos me contam que você sabe disso há muito tempo.
SB: Se eu disser o que eu não quero ser, você aceita a resposta? – mesmo estando de costas para mim, o vi rir e concordar com a cabeça. – Ministro da Magia, em primeiro lugar.
IS: Ótima escolha! – soltando uma risada alta.
SB: Medibruxo, sócio do Gringotes, professor... E me desculpa, pai, mas nem me passa pela cabeça ter uns dragões no quintal. – outra risada alta.
IS: Você acabou de excluir todas as profissões que um dia eu teria pensado para você...
SB: Desculpa.
IS: Por? Por ter sua própria personalidade? Desculpado. Então... O que te sobra? Vendedor de livros? De penas? De artefatos de quadribol? Ou quem sabe, jogador de quadribol? – ele fez a última pergunta muito pausadamente, e senti alguém prendendo meu estômago. – É, a última opção parece te agradar mais, não é? – virando-se novamente para me olhar. Ao ver que eu não sabia o que responder, ele sorriu. – Acho ótimo! Ótimo! Excelente! Um filho na Copa do Mundo de Quadribol!!! Uau! Que pai nunca sonhou em levar o filho em todos os jogos de quadribol do time que ambos torcem? E se quer saber de uma coisa, você vai ser um ótimo jogador! Te vi jogando esses dias...
SB: Quando?
IS: Eu estava aqui a negócios com Máxime e ocasionalmente fiquei sabendo de um jogo de quadribol com olheiros de times espalhados na arquibancada. Resolvi ficar para assistir, quando soube que era da Nox. Eles elogiaram muito você! Falaram até de uma vaga no Caerphilly Catapults...

Me levantei de um salto. Não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Estava tentando me decidir o que era mais estranho: meu pai estar me contando aquilo em tom de quase orgulho, ou o fato de parecer extremamente real.

SB: Você está falando sério?
IS: É, acho que sim... Eles iam te comunicar em breve, mas pedi que deixassem essa tarefa para mim. Então... Vai ou não vai para o país de Gales? – ele abriu os braços, e me deu um abraço longo, feliz. – Acho que devo te dar os parabéns, não?

Saímos do escritório algum tempo depois. Estava tentando me decidir o que fazia primeiro... Pular, cantar, dançar? É claro que depois de tudo meu pai teve que se mostrar mais firme para falar sobre a minha situação. Disse que depois da viagem de formatura, nós seríamos convocados para uma assembléia no Ministério, e que enquanto isso era para eu ficar totalmente fora de confusões. Principalmente relacionadas ao lobo. Ele nem precisaria pedir isso. Tudo o que eu mais queria no momento era terminar meu ano letivo o melhor que pudesse, aproveitar cada último momento de Beauxbatons, tentar salvar o campeonato para a Nox, apresentar logo a peça de teatro e ir embora para o País de Gales, começar vida nova bem do jeito como eu sempre quis...

É preciso amar as pessoas como se não houvesse o amanhã
Porque se você parar para pensar, na verdade não há...

Sou uma gota d’água, sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não lhe entendem
Mas você não entende seus pais.
Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo...
São crianças como você!
O que você vai ser quando você crescer?

°°°
N.A: Música- Legião Urbana, Pais e Filhos.

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