Friday, August 01, 2008

Epílogo

"Quando confrontados pelos nossos piores pesadelos, as escolhas são poucas: lutar ou fugir. Nós torcemos para encontrarmos forças que nos façam enfrentar nossos medos. Mas, às vezes, apesar de querer lutar, nós fugimos. Mas até quando e onde podemos nos esconder dos nossos medos?"

Heroes - Fight or Flight


31 de Outubro de 1981

A chuva fina que insistia em cair forçara a maioria das pessoas a procurar um abrigo na tentativa de se aquecer. De todas as pessoas presentes ao funeral, apenas as mais improváveis permaneciam de pé, na chuva, contemplando o caixão fechado e aguardando que fosse sepultado. Eram julgados os mais improváveis apenas para quem os conhecia, mas não a fundo, claro. Talvez ninguém, além deles mesmos, fosse capaz de afirmar que conhecia de verdade cada uma daquelas pessoas de pé, no mais absoluto silêncio.

Pessoas tão próximas, e ao mesmo tempo tão distantes. Permaneceram afastados uns dos outros sem trocarem uma palavra sequer por intermináveis 30 minutos, até que o silêncio foi quebrado pela chegada da última pessoa que faltava para completar a antiga família. E talvez a única, nas atuais circunstâncias, com coragem parar tocar algumas feridas ainda não cicatrizadas.

- É uma pena que tenha sido necessário uma tragédia para que eu pudesse revê-los – a mulher disse com a voz amargurada e todos a encararam

Permaneceram em silêncio, apenas observando-a se aproximar do caixão e colocar um colar em forma de cruz sobre ele. Acompanhavam cada movimento seu com o olhar e ao perceber a nítida apreensão que consumia cada um deles, riu.

- Sabem, quando estávamos na escola, se alguém me dissesse que chegaríamos ao ponto de estarmos dividindo o mesmo espaço sem trocarmos uma única palavra, pediria a internação imediata da pessoa.
- Todos pediriam – o homem de cabelos muito negros se pronunciou e sua esposa apertou seu braço, desconfortável.
- Obrigada por não me deixar falando sozinha – disse sorrindo para ele, e teve o sorriso retribuído – Lamentável que nem todo mundo entenda o que um simples gesto como esse pode representar.
- Vamos embora – a mulher de cabelos tão negros quanto os do homem segurou o braço do marido e o puxou – Não sou obrigada a ficar e ouvir isso.
- E lá vai ela outra vez... – falou debochada, consultando o relógio – Alguém apostou que ela ficaria meia hora dessa vez?
- Quem você pensa que é pra vir aqui me ofender? – a mulher partiu para cima da outra, já com a mão apertando a varinha
- Aquela que você deixou na mão quando mais precisei. E logo quem eu mais ajudei...
- Senhoritas, por favor, não vamos brigar – o homem moreno se pôs entre as duas e logo afastou sua esposa da recém-chegada – Vamos mostrar um pouco de respeito, isso é um funeral.
- Respeito é uma coisa que há muito não existe entre nós, meu caro – o homem loiro que até o momento se manteve afastado consolando a esposa se manifestou. Ele tinha o semblante mais sério de todos, tão diferente de quando era garoto – Mas você está coberto de razão. Isso é um funeral. Se não existe mais respeito entre nós, que estamos vivos, vamos ter com os mortos. Uma pessoa que sempre representou muito para todos nós merece, ao menos, que as brigam sejam cessadas enquanto seu corpo está sendo velado.

Ninguém respondeu, mas concordaram em silêncio que ambos tinham razão. A chuva cessou e aos poucos os familiares e demais amigos começaram a se reunir ao redor deles, para que o enterro fosse, enfim, concluído. Nenhum deles se encarava. Contemplaram, com muito pesar, o caixão de madeira preta descer lentamente até ser totalmente coberto por terra e flores. Um a um, ainda sem trocarem uma única palavra, foram saindo. O homem loiro, até então muito sério, afastou-se da esposa e filhos e se dirigiu até a mulher. Com um sorriso fraco e muito abatido, puxou um envelope do bolso e lhe entregou.

- Não sei o que é, mas acho que pensava que você saberia – disse indicando o lugar onde minutos antes tinha um caixão – Foi a última coisa que me pediu, que lhe entregasse isso.
- Muita coisa ruim aconteceu e acabou por afastar a todos nós, mas alguma coisa me diz que vamos nos ver outra vez – disse sorrindo também e guardando o envelope no bolso
- Queria acreditar, mas não sei se devo. Muita coisa aconteceu, nós mudamos.
- Não, meu amigo, não mudamos tanto assim. Apenas esquecemos como éramos de verdade. Voltaremos a nos ver, eu garanto. E não será em um enterro.
- Conto com isso. E ninguém culpa você pelo que aconteceu, não se preocupe.
- Sei disso, mas obrigada assim mesmo.

O homem sorriu menos abatido dessa vez e deram um longo abraço antes de se afastarem. Ele ficou parado observando a amiga se misturar às demais pessoas e deixar o cemitério. Não via como uma reconciliação do grupo seria possível, mas torcia para que ela tivesse a solução.

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