O relógio da escrivaninha marcava pontualmente cinco horas da madrugada quando Jane o consultou.
A casa estava em completo silêncio – desconsiderando, é claro, a respiração pesada de seu marido no quarto. Ela passara a noite em claro terminando de escrever o romance que já estava cotado para entrar na lista dos Best Sellers assim que fosse lançado, no próximo mês.
Pensou em ir dormir, mas as três xícaras de café forte que havia tomado ao longo das horas a mantinham acesa. Releu o último capítulo e se emocionou, – provavelmente de exaustão e satisfação, pois passara os últimos três anos por conta da série e ao final de tudo, sentiu que havia chegado exatamente ao ponto onde queria – lembrando-se de como havia se inspirado para começar a escrever estes últimos três livros.
Organizou e guardou todas as folhas dentro da gaveta, para entregar na editora. Fechou os olhos e respirou fundo, afundando a cabeça nas mãos. Ela nunca soube responder se havia adormecido e eventualmente sonhado, mas quando levantou a cabeça e abriu os olhos, um novo livro já estava completamente formado em sua mente. O título, os protagonistas, os antagonistas, a trama e até a trilha sonora de cada momento. Tudo parecia se encaixar detrás de seus olhos, como um quebra-cabeça. Sem conseguir esperar mais um segundo, foi até a estante e puxou uma caixa preta, abrindo-a. Dentro dela vários e vários diários completos se acomodavam organizadamente. Pegou um que na capa tinha o ano formado em auto-relevo: 1958. Vacilou um pouco antes de abri-lo, mas sentiu que já estava na hora de desenterrar o passado. As páginas de pergaminho envelhecido estavam grudadas com o pó. Passou a mão com cuidado na primeira delas, limpando-a e leu a única frase que constava ali, reconhecendo de imediato aquela caligrafia fina e caprichada: ‘Este diário pertence à Jude Bertrand Mandeville (eu). Folhear as próximas páginas sem meu consentimento pode lhe custar a vida’. Riu.
Folheou várias outras páginas, parando em algumas em especial e lendo-as por completo. Levou o diário até a escrivaninha e colocou-o aberto ao lado, esticando uma nova folha branca na máquina de escrever. Seus dedos pareciam involuntários quando iam batendo nas teclas e formando o título: O trevo de oito estações, de Jane Muir ¹.
Encarou a capa alguns segundos e resolveu pular os agradecimentos. Decidira deixar os agradecimentos por último. O prólogo era curto, no entanto, completo:
the Courage to face alone at last
the Risk of reliving a tormented past;
the Yielding to a role long cast –
I owe to many along the way.
the Opportunity at last to share;
the Understanding, its strength to dare;
the Truth I know as loving care –
I owe to few, only yesterday.²
E então, desabou em lágrimas. O passado retornara a ela com todo o seu peso e todas as circunstâncias. Ela sabia que uma vez que havia começado, seus próprios princípios não deixariam que ela parasse sem antes terminar completamente. Mas se perguntava se daria conta de chegar até o fim e lembrar tudo o que acontecera anos atrás, na Academia de Magia Beauxbatons...
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¹ Jane Muir é uma escritora americana. Tomei “emprestado” o seu nome para ser o nome fictício de uma das minhas novas personagens: Jude Bertrand Mandeville. Ela será a narradora da história toda.
² O acróstico foi tirado do livro de título original “Cry Out!”, em português “Gritos do Silêncio” de P.E. Quinn, do ano de 1984. Sua tradução literal é: “a coragem de enfrentar sozinho afinal,/ o risco de reviver um passado atormentado;/ a aceitação de um papel tão duradouro -/ devo a muitos pelo caminho.// a oportunidade de enfim compartilhar;/ a compreensão, sua força para ousar;/ a verdade que considero um cuidado amoroso -/ devo a poucos somente ontem.”
A casa estava em completo silêncio – desconsiderando, é claro, a respiração pesada de seu marido no quarto. Ela passara a noite em claro terminando de escrever o romance que já estava cotado para entrar na lista dos Best Sellers assim que fosse lançado, no próximo mês.
Pensou em ir dormir, mas as três xícaras de café forte que havia tomado ao longo das horas a mantinham acesa. Releu o último capítulo e se emocionou, – provavelmente de exaustão e satisfação, pois passara os últimos três anos por conta da série e ao final de tudo, sentiu que havia chegado exatamente ao ponto onde queria – lembrando-se de como havia se inspirado para começar a escrever estes últimos três livros.
Organizou e guardou todas as folhas dentro da gaveta, para entregar na editora. Fechou os olhos e respirou fundo, afundando a cabeça nas mãos. Ela nunca soube responder se havia adormecido e eventualmente sonhado, mas quando levantou a cabeça e abriu os olhos, um novo livro já estava completamente formado em sua mente. O título, os protagonistas, os antagonistas, a trama e até a trilha sonora de cada momento. Tudo parecia se encaixar detrás de seus olhos, como um quebra-cabeça. Sem conseguir esperar mais um segundo, foi até a estante e puxou uma caixa preta, abrindo-a. Dentro dela vários e vários diários completos se acomodavam organizadamente. Pegou um que na capa tinha o ano formado em auto-relevo: 1958. Vacilou um pouco antes de abri-lo, mas sentiu que já estava na hora de desenterrar o passado. As páginas de pergaminho envelhecido estavam grudadas com o pó. Passou a mão com cuidado na primeira delas, limpando-a e leu a única frase que constava ali, reconhecendo de imediato aquela caligrafia fina e caprichada: ‘Este diário pertence à Jude Bertrand Mandeville (eu). Folhear as próximas páginas sem meu consentimento pode lhe custar a vida’. Riu.
Folheou várias outras páginas, parando em algumas em especial e lendo-as por completo. Levou o diário até a escrivaninha e colocou-o aberto ao lado, esticando uma nova folha branca na máquina de escrever. Seus dedos pareciam involuntários quando iam batendo nas teclas e formando o título: O trevo de oito estações, de Jane Muir ¹.
Encarou a capa alguns segundos e resolveu pular os agradecimentos. Decidira deixar os agradecimentos por último. O prólogo era curto, no entanto, completo:
the Courage to face alone at last
the Risk of reliving a tormented past;
the Yielding to a role long cast –
I owe to many along the way.
the Opportunity at last to share;
the Understanding, its strength to dare;
the Truth I know as loving care –
I owe to few, only yesterday.²
E então, desabou em lágrimas. O passado retornara a ela com todo o seu peso e todas as circunstâncias. Ela sabia que uma vez que havia começado, seus próprios princípios não deixariam que ela parasse sem antes terminar completamente. Mas se perguntava se daria conta de chegar até o fim e lembrar tudo o que acontecera anos atrás, na Academia de Magia Beauxbatons...
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¹ Jane Muir é uma escritora americana. Tomei “emprestado” o seu nome para ser o nome fictício de uma das minhas novas personagens: Jude Bertrand Mandeville. Ela será a narradora da história toda.
² O acróstico foi tirado do livro de título original “Cry Out!”, em português “Gritos do Silêncio” de P.E. Quinn, do ano de 1984. Sua tradução literal é: “a coragem de enfrentar sozinho afinal,/ o risco de reviver um passado atormentado;/ a aceitação de um papel tão duradouro -/ devo a muitos pelo caminho.// a oportunidade de enfim compartilhar;/ a compreensão, sua força para ousar;/ a verdade que considero um cuidado amoroso -/ devo a poucos somente ontem.”
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