29 de agosto de 1958.
- Descarto uma, desço a seqüência e... Bati. Mais uma vez. Não estão em uma noite de sorte, senhores... - Peter lançou um olhar vitorioso para todos nós na mesa, puxando uma baforada forte do charuto que prendia na boca. – E respeitosa senhora, claro. – Fez uma reverência com a cabeça na direção de Isabelle e soltou a fumaça. Ela começou a balançar as mãos freneticamente para espantar o fedor, tossindo.
- Já pedi para esbaforir isso para o outro lado. Se eu tiver câncer de pulmão aos 25 anos de idade, a culpa é toda sua. – ela disse irritada. Peter riu, puxando as fichas do centro da mesa para seu lado, amontoando-as vagarosamente.
- Cadê seu espírito esportivo, Belle? Não sabe perder com dignidade? – ele a provocou e ela semicerrou os olhos, ameaçadoramente. – Então, mais uma partida?
- Não. Estou saturado de pôquer por hoje. – me manifestei pela primeira vez, esticando os braços acima da cabeça. - Preciso ir pra casa. Meus pais vão sair e vou ficar com Vivian. Além do mais, eu sei perder com dignidade... – comentei arrancando risadas de todos. Peter, Isabelle e Lawrence também se livraram de suas cartas.
- O acampamento amanhã, está de pé? – Lawrence perguntou enquanto organizava o baralho.
- Claro que está! É nossa tradição, se lembram? Todos os anos, no dia 30 de agosto, nós acampamos no bosque. Há cinco anos fazemos isso. – Isabelle respondeu entusiasmada, mas ao olhar para mim, murchou. – Você não está desistindo, está, Derek?
- Não usaria o termo “desistir”. Só estou desanimado. Porque não tentamos um programa novo dessa vez? Acampar no bosque já perdeu a graça...
- No que, exatamente, você está pensando? – Peter parecia concordar, mas sacudi os ombros.
- Em nada, especificamente. Só queria inovar. – Belle soltou um suspiro triste ao meu lado e olhei-a.
Isabelle, Lawrence e Peter eram os meus melhores amigos. Todos os três, “trouxas”. Como eu só ficava com eles durante as férias de verão, Natal e o feriado de Páscoa, nós já tínhamos estabelecido cronogramas duríssimos para cada data. A noite de pôquer e o acampamento no bosque, que marcava a entrada de Rennes, eram programas clássicos do final das férias de verão. Desde o meu primeiro ano em Beauxbatons, seguíamos à risca nossa “agenda”, e eu percebi que tentar inová-la, deixou Isabelle muito chateada.
- Ok. Vamos acampar. Não esqueçam os marshmallows e...
- Lanternas, tortas lunares, histórias de terror, sacos de dormir... Já sabemos. – Peter foi listando entediado e concordei com a cabeça, mas Isabelle sorria abertamente.
- Vai ser divertido, admitam! – ela disse alegre. Lawrence virou os olhos.
- Se você está dizendo...
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30 de agosto de 1958.
Depois de Lawrence contar todo o seu estoque de histórias de terror, Peter o seu de piadas e a fogueira apresentar sinais de que iria se apagar definitivamente a qualquer momento, finalmente decidimos dormir. Mal tinha entrado em minha barraca e me fechado no saco, um foco de luz atravessou a parede de tecido e a sombra conhecida de Isabelle se formou. Sentei.
- Abre pra mim. – ela sussurrou do lado de fora.
- Belle? Que aconteceu? Sua barraca desmontou?
- Não, está tudo bem. Quero falar com você. Abre!
Obedeci ainda sem entender nada. Assim que abri o zíper, ela pulou para dentro e o fechou novamente. Sorriu para mim de um jeito maroto.
- Oi.
- Oi. O que...
Ia perguntar o que ela queria, mas não deu tempo. Antes que eu pudesse completar a frase, ela já havia me puxado para um beijo intenso, que correspondi. À medida que nos beijávamos, ela fez com que me deitasse novamente sobre o saco de dormir, e deitou em cima de mim. Quando nos separamos, por uns segundos, não me mexi.
- O que exatamente você quer com isso? – perguntei sorrindo e envolvendo meus braços em sua cintura. – Você tem alguma idéia de onde podemos chegar, se você continuar aqui, assim, em cima de mim?!
- E você já parou pra pensar que a minha intenção é exatamente saber até onde podemos ir? – ela perguntou baixo, provocando. Deu uma mordida no meu pescoço que me fez perder todo o pouco controle que ainda tinha. Agarrei seus braços e a girei, fazendo com que ficasse por baixo de mim. Ela riu.
- Espero que você não confunda as coisas. Nós somos amigos, é só isso que podemos ser.
- Se eu nunca confundi, porque confundiria agora?
- É diferente... – comecei e ela pareceu impaciente.
- Amigos. Nada mais do que isso. – respondeu com firmeza e puxou minha camiseta. Rimos.
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- Tem certeza de que temos que fazer isso? – perguntei pela milésima vez a Yanic, que já havia montado em sua vassoura e esperava que eu fizesse a mesma coisa com a “minha”.
- Tenho. Você quer ou não superar esse seu medo? Vassouras não mordem. – ele respondeu paciente.
- E se eu cair? Eu nunca voei.
- Do chão você não passa, não se preocupe. – Ele disse rindo e senti meu estômago embrulhar. – Anda logo com isso, Penny! Você não vai cair. É só se segurar firme. Vamos.
Encarei o cabo de madeira tosca alguns segundos e passei uma das pernas por ele, agarrando a sua extremidade com as duas mãos, trêmulas.
- Quando contar até três, você dá um leve impulso no chão ok? 1...2...3.
Obedeci e fechei os olhos em seguida. Quando os abri novamente, senti que meus pés flutuavam. Não queria olhar pra baixo e ver a que altura estava, mas Yanic gritou bem acima de mim.
- Você vai mesmo ficar só a um metro do chão?
Olhei para cima, para olhá-lo. Devia estar há uns seis metros de distância. Olhei para baixo e constatei que era verdade. Se eu caísse daquela altura, não iria nem me arranhar. Era uma altura segura, mas não me livrava do meu medo. Fechei os olhos novamente e respirei fundo. Direcionei o cabo da vassoura para cima e joguei meu corpo contra ele. Senti-o subir cada vez mais. Endireitei-o e abri os olhos. Um pânico imenso tomou conta do meu corpo quando vi as casas de Le Havre se formarem abaixo do morro do tamanho de caixinhas de fósforos. Yanic parou ao meu lado.
- Então? Quer descer? – perguntou preocupado ao ver que estava pálida e com olhos fixos.
- Não. – Sacudi a cabeça sorrindo e sentindo o vento passar calmo pelo meu rosto. – Foi a melhor sensação da minha vida. Sentir medo e depois, me livrar dele. Não quero descer daqui tão cedo...
- Eu disse que não era difícil, não disse? – ele perguntou sorrindo aliviado e concordei com a cabeça. Ficamos em silêncio vários segundos.
- Nic... Sabe o que isso significa?
- O que?
- Que você perdeu a aposta. Eu estou voando, não estou? Você vai ter que pegar Afrodite e Héstia.
- Não podemos esperar mais um pouco? Eu realmente não gosto de cobras. – ele desfez o sorriso e foi a minha vez de rir.
- Eu também não gostava de altura. Você não tem mais motivos para adiar.
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- Você está se saindo bem. – comentei observando Yanic com os dois braços abertos enquanto Afrodite e Héstia deslizavam por eles, lentamente.
- Elas são simpáticas. Acho que podemos ser amigos. – ele não escondia o tom temeroso na voz.
- Definitivamente. – Afrodite sibilou rastejando até mim e se enrolando ao meu lado. – O cheiro dele é ótimo.
- Até mais do que isso, se você quiser. – Héstia completou se enroscando no colo dele. Ri.
- Elas aceitam a sua proposta. – disse e ele pareceu se aliviar, pois acariciou a cabeça de Héstia, sorrindo. - Obrigada. – disse antes que pudesse segurar e Yanic desfez o sorriso, me olhando sério.
- Pelo quê?
- Pela companhia. Pela amizade. Por me fazer não ter medo de altura mais... Por se tornar amigo das minhas melhores amigas. Enfim. – enquanto ia dizendo, senti os olhos se encherem de lágrima. Yanic riu.
- Você é uma boba, Penélope. Amigos servem pra isso. Você deveria ser menos anti-social e tentar uns novos, de vez em quando... Não machuca, sabia? Amanhã vou me encontrar com o pessoal da banda. Meu pai disse que está preparando uma “surpresa” antes do nosso show de abertura de ano letivo. Jude vai estar lá. Você poderia ir...
- Melhor não. É o encontro de vocês com o seu pai, coisas sobre a banda. – disse e Yanic fez uma expressão de impaciência - Não se preocupe comigo. Depois de amanhã estamos voltando a Beauxbatons e tudo vai ficar bem.
- É. Tudo vai ficar bem. – Yanic sacudiu os ombros e riu enquanto observava Héstia adormecer.
[To be continued...]