Wednesday, May 28, 2008

Entre tapas e beijos

Do diário de Anabel Damulakis


O penúltimo sábado de maio marcava para os estudantes a última visita para Paris antes do fim do ano letivo. Acordei cedo e já estava descendo para tomar café da manhã quando reparei que alguma coisa estava muito estranha no Salão Comunal da Sapientai. Vários alunos e alunas se agrupavam em torno do mural e comentavam, animados, um pôster que havia sido pregado lá. Não me animei a enfrentar a multidão, mas nem foi preciso. Brenda saiu cortando um grupo de garotas e sorria.

- Por que não me contou que tinha se inscrito? – começamos a caminhar para fora da bagunça.
- Inscrito... onde?
- No concurso de Rei e Rainha do Baile de Formatura!!!
- Não te contei por que não me inscrevi. Suficiente?

Continuei caminhando, mas Brenda parou. Virei para encará-la e ela parecia confusa.

- Se você não se inscreveu, pode me dizer por que você e Bernard estão na lista de concorrentes que pregaram no mural?
- Do que você está falando?
- Estou falando daquele pôster pregado no mural!!! Saiu a lista definitiva de todos os casais que vão disputar esse concurso, e não são muitos. No máximo, dez. Você e Bernard são um deles. A não ser que tenha outra Anabel Damulakis McCallister que irá concorrer com outro Bernard Lestel...

Olhei para Brenda esperando o momento que ela ia rir e falar algo do tipo “peguei você”, mas não aconteceu. Ela permaneceu parada exatamente no mesmo lugar, me encarando séria e curiosa. Em passos firmes, voltei para o Salão Comunal. A algazarra continuava em frente ao mural, mas sem nenhuma delicadeza consegui atravessar o bolo de pessoas até finalmente ter uma boa visão do pôster. E era verdade. Não sabia como tinha acontecido, mas eu e Bernard estávamos inscritos para o concurso “Rei e Rainha” do baile de formatura.

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- ISABEL DAMULAKIS MCCALLISTER!!!

Muitos estudantes já estavam terminando de tomar café da manhã e se preparavam para ir a Paris. Isa era uma delas. Entrei no Salão Principal aos berros e caminhava em sua direção com o dedo apontado para o peito dela. Ela, no entanto, fez uma cara de falsa surpresa e sorriu afetada, olhando ao redor.

- Bom dia, Bel! Como você está nessa linda manhã de sol?
- FOI VOCÊ?
- Ah, eu estou muito bem também, obrigada. – ela continuava sorrindo e senti meu sangue ferver. Agarrei seu braço.
- EU NÃO SEI O QUE VOCÊ VAI FAZER, ISSO NÃO É PROBLEMA MEU, MAS SE NÃO TIRAR MEU NOME E O DE BERNARD DAQUELA LISTA DE CONCORRENTES PARA ESSE CONCURSO IDIOTA, EU MATO VOCÊ. ENTENDEU???

Soltei seu braço e sai andando na direção contrária. Uma pequena aglomeração de alunos já se formava ao nosso redor e pareciam esperar um ringue de boxe. Isa veio atrás de mim falando coisas como “está tudo bem”, “somos irmãs”, “desentendimento de família”. Me alcançou quando já estava no jardim.

- Fui eu sim. Eu que inscrevi você e Bernard.
- Ótimo. Desfaça.
- Não posso. A lista de concorrentes já está com Máxime. Já estão preparando tudo!!!
- Já disse que não me interessa COMO você vai fazer, apenas tire meu nome daquela lista o mais rápido possível.
- Bernard achou uma boa idéia... – ela começou e eu parei de supetão.
- Você falou com Bernard sobre isso?
- Claro que sim. Ele também não gostou inicialmente da idéia, mas... depois que eu disse que o prêmio era uma viagem para a Itália, uma semana, só vocês dois... – ela foi deixando a voz morrer propositalmente.
- Você falou com Bernard sobre isso??? – perguntei de novo, assustada. – Ele CONCORDOU?
- Sim! – sorriu animada. – Bel, eu não teria inscrito vocês se não achasse que vocês dois têm GRANDES chances de vencer! Você e Bernard estão precisando de um tempo sozinhos...
- Do que eu e Bernard estamos precisando, não é da sua conta, Isabel. Se ele gostou da idéia, que participe SOZINHO desse concurso. Eu não vou e é minha palavra final. Quero meu nome fora daquela lista até amanhã!

Encarei-a ameaçadoramente e ela sacudiu os ombros, ainda sorrindo. Continuei sozinha o caminho até o barco. Precisava conversar com Bernard.

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Cheguei ao restaurante onde tinha marcado com Bernard alguns minutos antes, mas ao contrário do que pensava, não precisei esperá-lo. Bernard estava sentado em uma mesa e conversava baixo com uma menina que nunca tinha visto antes. Cabelos longos e escuros, em boa forma, e do tipo que orgulharia a Isabel se fosse sua aluna... Os dois riam. Caminhei estressada até lá, mas nenhum deles percebeu minha chegada.

- Atrapalho alguma coisa?
- Bel!!! – Bernard pulou da cadeira parecendo assustado. – Chegou mais cedo?
- Pelo visto, não fui a única... – comentei azeda e lancei um olhar ácido para a garota na mesa, que mantinha um sorrisinho extremamente simpático em minha direção. Não retribui.
- Bê, acho que ela está esperando que você nos apresente. – ela se levantou e Bernard sorriu concordando.
- Bel, essa é Clarisse. Nossa amiga de infância... Minha e de Ian, quero dizer. Clarie, essa é Anabel, minha namorada e futura esposa. – Bernard nos apresentou parecendo empolgado e a menina estendeu a mão, que apertei com um pouco mais de força do que necessário.
- Bom, então acho que agora que sua companhia já chegou, vou indo, Bê. Foi um prazer te conhecer, Anabel. Bernard estava agora mesmo me falando de você...
- Que simpática! O prazer foi todo meu, Clarie. – respondi irônica e Bernard tossiu sem graça. A menina porém não mudou sua expressão.
- Nos vemos por aí, então. – Bernard falou e ela concordou. A acompanhamos sair do restaurante, em silêncio, e assim que a porta bateu virei nervosa para Bernard.
- Tendo bons tempos, Bê? Relembrando a infância? – perguntei em um tom de voz alto e Bernard olhou para as mesas ao redor.
- Vamos sair daqui... – ele disse me puxando pela mão para fora do restaurante também.
- Por quê? Vamos voltar lá pra dentro! Ou está com vergonha de expor sua “futura esposa” barraqueira? Aposto que sua amiguinha Clarie é elegante o suficiente para se portar bem em restaurantes assim, não é? – eu quase gritava enquanto Bernard continuava me arrastando pela mão pelas ruas de Paris.

Ele não respondeu nada. Só soltou meu braço e paramos de andar quando estávamos no final de uma viela. Me encarou.

- Pronto. Pode gritar, bater, fazer o que quiser. Não vou dizer que não tenha motivos suficientes para isso, então, pode começar agora que eu vou somente escutar tudo o que tem a me dizer... – ficou me olhando em silêncio e eu perdi tudo o que tinha pra dizer. Mas um segundo depois, recuperei.
- Então... Clarisse...?
- O que você quer saber sobre ela? – ele perguntou paciente se sentando na calçada.
- Tudo. Quem é? De onde veio? Por que veio? Quando vai embora? E o que já aconteceu entre vocês dois?

Ele permaneceu sério até a última pergunta, quando soltou uma risada alta que me deixou com mais raiva ainda.

- Clarisse Beltoise, como disse quando as apresentei, é uma amiga de infância. Ela estava morando em Madrid, mas agora voltou a Paris e por acaso, nos encontramos naquele restaurante. Estava me fazendo companhia enquanto você não chegava, e aproveitamos para colocar as conversas em dia. Ponto. Foi somente isso que aconteceu entre nós dois.
- Sério? Não pareceu. Pareciam tão íntimos... Cheios de risadinhas, apelidinhos carinhosos...
- Apelidinhos carinhosos? – outra risada alta. – Ela só me chamou de “Bê” e não é um apelido carinhoso. Todos me chamam de Bê! Você, Dominique, Ian, Merlin... É só meu apelido!
- Para quem brotou do chão depois de tantos anos sem te ver, já achar que tem intimidade suficiente para resgatar seu apelido, estamos indo bem! Bem rápido!
- Ela não “brotou do chão”. Já te contei tudo que aconteceu, exatamente do jeito que aconteceu. Clarisse é como se fosse minha irmã! Ian pode afirmar isso. – ele respondeu rindo. – Você acha que se eu quisesse alguma coisa com ela, marcaria horário com você no mesmo restaurante? Você está ficando paranóica!!!

Ele falou se divertindo mas pareceu assustado quando percebeu minha careta de fúria. Calou-se.

- Paranóica? Eu? Você está todo soltinho, ultimamente, não? Me chamando de paranóica, de conversinhas com uma amiga de infância fantasma, fazendo acordos estúpidos com minha irmã gêmea, aceitando participar de um concurso ridículo de popularidade.
- Ah, então é isso que está te incomodando mais, não é? Quando Isa me avisou que havia nos inscrito, eu achei uma péssima idéia, mas ela disse que tínhamos chances, que não era nada demais e nem precisávamos dançar maxixe... Mas se você realmente não quer participar desse concurso comigo, tudo bem. A formatura é sua, Bel. Sou só seu acompanhante, eu acho...
- Como assim, você “acha”?
- Bom. Você não parece muito satisfeita comigo nesses últimos tempos.
- Você está delirando? – perguntei assustada e ele se levantou, ficando da minha altura e me olhando bem nos olhos.
- Não. Você não pode negar o fato de estar bem diferente comigo desde o dia que disse que te amava e você não conseguiu responder nada.
- Ok, você sim está ficando paranóico. – Desviei meu olhar do dele, constrangida, mas ele segurou meu braço, me impedindo de afastar.
- Se quer terminar comigo, faça isso logo. Não fique inventando crises de ciúmes por amigas de infância e nem ataques de raiva por causa de um concurso que como você mesma definiu, é ridículo.
- Terminar? Quem falou em terminar? – perguntei assustada.
- Se não quer isso, afinal, o que quer com todo esse stress pra cima de mim?

Os olhos azuis dele penetravam os meus de uma maneira fria. Várias imagens passaram na minha memória e senti um amargo no estômago, mas não podia esconder mais.

- Ulisses Bonaccorsso me beijou. Foi durante a viagem de formatura. Ele quem roubou o Grimoire, mas enquanto nos beijávamos, eu descobri, e a Isa impediu que ele alterasse minha memória. Aí ele devolveu o livro depois que fizemos um acordo de que não íamos denunciá-lo, e colocamos fogo.

Bernard parecia não estar prestando atenção no restante da história que eu contava aos atropelos. Andava de um lado para o outro, com raiva.

- Bê... – tentei chamar, mas ele só parou e fez um sinal com a mão pedindo que eu esperasse. Não interrompi mais por vários outros minutos.
- E só agora você me conta?
- Eu não sabia como...
- Passei todas essas semanas falando muito pouco com você. Achando que eu tinha errado em alguma coisa!
- Desculpa.
- Nesse momento não sei se consigo te desculpar. Estou me sentindo um completo estranho na sua vida. Você estava me evitando. Nem nos vimos na Páscoa! Estava até fazendo planos de finalmente te levar pra conhecer minha família, mas você cortou dizendo que tinha de fazer algo urgente na sua casa e nem disse o quê.
- Fomos queimar o Grimoire!
- Eu teria entendido se você tivesse me falado logo! Por que ficou escondendo esse tempo todo?
- Já disse. Não sabia como te contar...
- E eu achando graça de você com ciúmes da Clarisse! – ele falou alto rindo debochado. – Acho melhor conversarmos outra hora.

Olhou decidido pra mim e eu não sabia o que dizer. Quando começou a se afastar, corri atrás.

- Não. Bernard. Vamos conversar tudo agora!
- O que mais quer me contar? – ele parou perguntando baixo e eu segurei sua mão.
- Olha pra mim! Não vou deixar você ir embora sem antes dizer que esse beijo do Ulisses foi a pior coisa que já me aconteceu. Pior até mesmo que descobrir que Isabel era minha irmã. Eu bati nele depois...
- Agora estou me sentindo muito melhor!
- Sem ironias, por favor?! Elas não são do seu feitio e sim do meu.
- Vinganças também são do seu feitio, como deu pra perceber.
- Vinganças?
- Beijou Ulisses na sua viagem de formatura só por que beijei Samantha na minha. Estamos quites.
- Que parte do “foi a pior coisa que me aconteceu” você não entendeu direito?
- Vou repetir uma frase que você mesma me disse quando te contei sobre Samantha: “quando um não quer, dois não beijam”. Nem brigam. Não quero brigar mais com você por hoje, Bel. Vamos conversar outro dia.

Novamente ele recomeçou a andar, e me sentindo muito pior, corri atrás dele e o impedi de continuar. Ele pareceu cansado.

- Não vai embora!
- Me dá um motivo para ficar aqui e continuarmos essa discussão.
- Eu te amo, seu idiota! Não deu pra perceber isso?

A expressão dele mudou da água para vinho. Naquele exato momento eu soube que tinha conseguido desarmá-lo, finalmente. E estranhamente, também estava me sentindo muito mais leve. Ele não conseguiu prender um sorriso. Sorri também.

- Repete isso?
- Não me irrita, Bernard.
- Você ensaiou tudo isso, não foi? Sabia que eu ia esquecer toda essa história de gregos e Grimoire se você finalmente me respondesse.
- Não foi ensaiado. Mas até que veio a calhar...
- Ok, então façamos o seguinte: eu apago toda a história da Samantha, você apaga toda a história do Ulisses, eu te amo, você me ama, não há nada entre nós pro resto de nossas vidas.
- Clarisse. – falei depressa, ele riu.
- Não vamos voltar nesse assunto?! – implorou.
- Ok. Por hoje já foi o suficiente. Já tivemos nossa primeira grande e última D.R..
- Depois eu que estou muito “soltinho” né? – ele perguntou me abraçando. Ri.
- Sobre o concurso... – comecei, ele tapou minha boca.
- Esquece isso. Não participamos e pronto.
- Não. Para falar a verdade... Se não tivermos que dançar maxixe, não me parece tão má idéia assim. Quero dizer, é minha formatura. Eu saio do castelo em um mês. Ninguém vai se lembrar disso ano que vem, certo?
- Eu estou entendendo direito? Nós vamos participar desse concurso?
- Se você ainda aceitar...
- Eu posso fazer um esforço.
- Certo. – ri e ele me puxou para um beijo longo.

No fim do dia, Bernard me acompanhou até o barco de Beauxbatons e estávamos nos despedindo quando um grupo de alunos mais novos passou vestindo camisetas com uma foto nossa. Aquilo foi chocante, até mesmo para Bê. Ficamos observando o grupo entrar no barco, animado, e nos encaramos.

- Éramos nós?
- Sim. E com uma frase do tipo: Eu voto em Bel e Bê para casal “Rei e Rainha”. – Bernard disse, assombrado.
- Eu...mato...a...Isabel.
- Faça isso. Mas eu tenho a impressão de que não foi uma idéia dela. – ele disse rindo assustado e ri também.
- Ian. – falamos juntos e ele concordou.

Em outras circunstâncias, estaria mesmo correndo atrás da Isa com uma varinha, mas estava me sentindo tão feliz como nunca tinha me sentido antes, e não queria que nada mais estragasse meu humor. Nem mesmo as camisetas.

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