Sunday, August 02, 2009

Mônaco, França – Agosto de 1959

Pensava que passaria as férias de verão entediada, apenas na companhia de Kalani e Danielle, mas me enganei. Antes mesmo do fim de julho, com exceção de Philipe, já havia reencontrado toda a turma. Depois da morte de toda a família, a mãe de AJ organizou umas aulas de Defesa Avançada e nos deu a oportunidade de participar, então não pensei duas vezes e me inscrevi. Todos os dias da semana, na parte da manha, pegava uma chave de portal e me reunia com o resto do grupo em Londres, onde aconteciam as aulas. Danielle e Kalani não se animaram, mas encontrava lá Kwon, Andreas, Marcel e Anabela.

Na parte da tarde, quando não tinha treino de DA, passava meu tempo na companhia de Kalani. Dani às vezes estava conosco, mas ela tinha namorado e Henri não havia viajado com a família, então ela dividia seu tempo entre nós dois e ele, e é claro que perdíamos de lavada. Mesmo sem a presença da Dani, conseguia me divertir. Kalani era uma excelente companhia, me fazia rir o tempo todo e dessa forma não pensava em Johnny e nem no fato do meu namorado estar há milhares de quilômetros de distancia, em outro continente. E da mesma forma que ele me mantinha entretida para não pensar em Philipe, eu não o deixava pensar nos amigos que ia visitar no Havaí. Nos víamos todos os dias, se ele não aparecia na minha casa, eu ia até a casa dele. Descobrimos muitas coisas em comum, era como se já nos conhecêssemos há anos, e não apenas desde o ano passado.

Era assustador o quanto éramos parecidos, mas assustador mesmo foi o que aconteceu no fim do mês de Julho. Era véspera do meu aniversário e havia acabado de me despedir de Kalani, quando alguém bateu na porta do quarto...

***

19 de Julho de 1959 – Casa dos Delacroix

- Então nos vemos amanha, e Danielle jurou que não vai furar – Kalani parou antes de sair do meu quarto.
- É bom mesmo que não fure, é meu aniversário! – falei indignada e ele riu.
- Até amanha – ele sorriu e fechou a porta ao passar.

Voltei a me esparramar na cama assim que ele saiu e fechei os olhos, cansada. Havia caminhado o dia inteiro pela cidade, sem rumo, e minhas pernas suplicavam por um descanso. Já estava quase totalmente relaxada, decidida a dormir sem tomar banho, quando ouvi uma batida na porta. Abri um olho só e vi a imagem de Pierre entrando no meu quarto, carregando uma caixa quadrada.

- Posso entrar?
- Já entrou... – respondi cansada, sentando na cama – O que quer?
- Primeiro, quero que você se desarme, não vim brigar – Pierre fechou a porta e me encarou sério – Vim apenas conversar.
- Não estou armada, só um pouco cansada – me defendi – Mas quer conversar sobre o que?
- Johnny – falou direto e me mexi desconfortável na cama – Não pode fugir pra sempre, Bianca. Desde que ele morreu, não trocamos uma única palavra.
- Foi muito difícil lidar com a morte dele, mas eu consegui encontrar um sossego, por favor, não tire isso de mim.

Pierre não respondeu e colocou a caixa em cima da cama, sentando também. Começou a desamarrar os laços que a fechavam e abriu a tampa, revelando um tecido rosa-choque embolado, com uma goles por cima. Ele tirou a goles primeiro e a girou na mão, como se a admirasse. Podia até ver o brilho em seus olhos, um brilho de orgulho e saudade, enquanto fitava a bola avermelhada. Pierre desviou os olhos dela e depois de um longo suspiro, a estendeu para mim.

- 13 de Março de 1957. Os Quiberon Quafflepunches perdiam de 240 a 80 para os Abutres de Vratsa. Johnny Latour, com o braço enfaixado por causa de um balaço, roubou a goles de Igor Petrov e, menos de um minuto antes de Henri Duchamp capturar o pomo, marcou os dois gols que deram a vitória a seleção da França na Taça Européia de Quadribol. Mesmo machucado, Johnny salvou o time da derrota e ganhou a goles de ouro, como melhor artilheiro da Liga. Naquele dia ele trouxe a goles da vitória pra casa e guardou, esperando um dia dar ela a você. É sua.
- Não, não posso ficar com essa goles – empurrei de volta pra ele.
- Claro que pode, é sua de direito – ele insistiu e a segurei nas mãos – Johnny queria que ficasse com você. E acho que isso também deve ficar com você – ele puxou da caixa o velho uniforme de Johnny do Quiberon Quafflepunchers, ainda sujo de sangue no braço direito – Ele guardou sem lavar, dizia que era para lembrar sempre que mesmo com o braço quase partido, ajudou o time a vencer. São seus tesouros e acho que nada mais justo que fiquem com você.
- Por que está fazendo isso? – perguntei confusa, passando a mão na mancha de sangue seco no braço do uniforme.
- Eu estava lá, onde aconteceu o acidente, porque ouvi Johnny me chamar – Pierre começou a falar com a voz embargada, como se fosse doloroso – Ele me pedia para voltar e cuidar de você. Não entendi na hora, até voltar e ver que você ainda estava viva. Chamei o socorro e fique lá, esperando, sem poder fazer nada para ajudá-los.
- Philipe me contou que foi você quem chamou a ambulância. Eu também ouvi Johnny falando comigo, me pedia para ficar calma, porque ele estava bem.
- Eu achei que tinha entendido o recado dele, até encontrar essa caixa – Pierre continuou – Três semanas antes do acidente ele me confrontou querendo saber por que nunca havia a apoiado em seu desejo de jogar quadribol como todos nós, dizia que não entendia. Ouvi Johnny elogia-la por horas, dizer o quanto você era talentosa e que era um desperdício não poder jogar e não contar com o nosso apoio, e não pude encontrar um argumento sequer para rebatê-lo. Percebi que não tinha um real motivo para não incentiva-la, que estava apenas concordando com o nosso pai, que aquela não era uma opinião minha sobre o assunto. Johnny tinha a ambição de fazer de você uma sucessora, de fazer com que o substituísse na vaga de artilheira do Quiberon Quaffepunchers, sabia disso?
- Não... – larguei a goles em cima da cama e segurei as vestes dele, apertando o tecido nas mãos – Mas como posso jogar por um time da Liga Européia, se não tenho base nenhuma por não jogar na escola?
- É ai que eu entro – Pierre pegou a goles de cima da cama e a girou na mão com habilidade – Não chego aos pés de Johnny em cima de uma vassoura, mas sou um excelente técnico, vou ajudar o treinador Perrineau nessa temporada. Vou treinar você.
- Acho que já sei jogar quadribol, não preciso aprender nada.
- Claro que você sabe, mas será que agüenta mais de uma partida? – ele questionou – Ou dura uma partida inteira, de horas? – fiquei sem responder e ele emendou – Você é boa, Bianca, mas mesmo que consiga se sobressair entre os jogadores de Beauxbatons, se fizer os testes para reserva do Quiberon Quafflepunchers, vai ser massacrada. Você tem habilidade, mas não tem técnica.
- E por isso você quer me treinar? – falei descrente – Assim do nada?
- Estou tentando consertar um erro antes que seja tarde demais. Vai engolir o orgulho, como eu estou fazendo, e aceitar a minha ajuda ou prefere passar o resto da vida acompanhando os campeonatos de quadribol da arquibancada?


***

- Mais rápido, Bianca! Vai estourar o tempo, ande!

Acelerei o passo e alcancei a mão de Pierre antes que ele pudesse apertar o botão do cronômetro. Apoiei as mãos no joelho, o rosto vermelho e quente, quase sem ar.

- 27 segundos. Tem que fazer em 20 segundos, sei que pode melhorar esse tempo.
- Dá um tempo, ok? Estou fora de forma.
- Você não está tendo aulas de Defesa Avançada todos os dias de manha?
- O que você acha que está me deixando cansada? – respondi azeda – E não tenho que ficar correndo de um lado para o outro nas aulas.
- Você topou ser treinada por mim e eu fui treinado pelo Perrineau, o que faz com que eu seja linha dura mesmo, mas é pensando no que é melhor pra você.
- Eu sei, eu sei – falei tentando recuperar o ar e ele me estendeu uma garrafa com água – Eu vou me empenhar mais, quero fazer isso, mas antes vamos fazer um trato? Pare de me chamar de Bianca, prefiro Bia.
- Só se você parar de me chamar de Pierre e começar a me chamar de PJ – ele respondeu e ri, concordando com a cabeça – Bom, trato feito. VAMOS LÁ, BIA! ATÉ O FIM DO CAMPO E DE VOLTA AO PONTO INICIAL EM 20 SEGUNDOS!

Ele assoprou um apito irritantemente alto e levantei outra vez, tornando a correr até o outro lado do campo de quadribol e voltando até onde ele estava de braço estendido. Meu relacionamento com Pierre, ou melhor, com PJ, nunca foi dos melhores. Passamos 17 anos tendo nossos altos e baixos, entre muitas brigas e poucos momentos de companheirismo, mas parecia que as coisas começavam a melhorar. Tinha certeza de que, de onde estivesse, Johnny estava observando a isso tudo e sorrindo satisfeito. Ele tinha, enfim, feito seus irmãos mais novos se entenderem.

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