Lembranças de Anabel Damulakis McCallister
Dia dos namorados:
- Onde estamos indo? – perguntei pela milésima vez a Bernard, enquanto ele me guiava lentamente. Meus olhos estavam tapados por uma faixa preta.
- Já disse: é uma surpresa. Para de me perguntar. Não vou te responder.
- É sério, Bê. Não queria ter que sair de Beauxbatons. Agora que as investigações sobre o Grimoire estão chegando a alguma coisa concreta e...
Parei de falar quando Bernard parou de andar. Um segundo depois, a claridade invadiu meus olhos. Estávamos na porta do Taillevent, um dos restaurantes mais populares de Paris. Arregalei os olhos e Bernard sorriu.
- Você fez reserva nesse restaurante há quantos meses atrás?
- Alguns meses. – ele sorriu satisfeito me oferecendo o braço. Aceitei. Caminhamos em direção à recepção.
- Você é maluco! Uma água aqui deve custar o olho da cara.
- Como você é romântica, Anabel! – ele riu e deu um beijo na minha testa. – Vamos.
Poucos minutos depois, uma das recepcionistas nos guiava entre as mesas até a nossa. Uma simples, de duas cadeiras. Toalhas brancas, taças de cristal e velas. Várias velas. Sentamos.
- Não gosto de restaurantes com velas em cima da mesa. Se lembra da última vez, não é? – Bernard concordou rindo e assoprou as velas, apagando-as.
- Melhor não corrermos riscos. Já vou ter que deixar meu rim aqui, por causa do jantar. Se tiver que deixar um fígado por causa dos prejuízos...
- Ah, isso foi muito romântico! Muito mesmo! Estou impressionada. – disse sarcástica e ele me puxou para um beijo longo.
~*~
Tudo estava indo maravilhosamente bem. Pedimos as bebidas, e uma entrada maluca, mas até saborosa. Bernard e eu ríamos e comentávamos dos outros casais ao nosso lado. As mulheres cheias de jóias e maquiagens, os homens pomposos.
- Acho que não nasci pra ser assim. – comentei observando uma moça na mesa ao lado com vários anéis nas mãos.
- Assim como? – Bernard perguntou beliscando a entrada.
- Assim... cheia de... estilo. Entende? Como a Isabel. Posso até implicar, mas tenho que assumir: ela tem estilo. Ela sabe se comportar em lugares como esse. Sabe se vestir.
Bernard parou de mastigar e ficou me encarando sem expressão. Quando percebi que ele estava me olhando, ri.
- Que foi?
- Nada. Só estou registrando esse momento de você elogiar a Isa.
- Estou falando sério, Bê!
- Eu também! Do que afinal você está falando? Você também é cheia de “estilo”. Só conheço uma pessoa igual a você, e essa pessoa está sentada na minha frente, nesse exato momento! Não precisa usar saltos, nem marcas, nem ser a melhor aluna da turma de etiqueta. Você é ótima do jeito que é.
A resposta ficou no ar, pois o garçom chegou com nosso jantar e nos serviu. O clima, que até então estava ótimo, pesou, assim que eu mastiguei a primeira vez o conteúdo do meu prato e tive que me segurar para não cuspir imediatamente. Engoli. Lágrimas saíam dos meus olhos sem parar. Bernard me olhava assustado.
- Que aconteceu?
- Você sabe muito bem que eu sou VEGETARIANA! – disse elevando a voz. Alguns casais nos olhavam assustados, mas minha raiva estava incontrolável.
- Sei. Por quê?
- Se sabe, por que pediu um prato cheio de CARNE pra mim?
- Carne? Bel, isso não é carne. O meu é igual, olha. – ele apontou para o próprio prato, assustado. A voz controlada no mesmo tom. – São moluscos.
Antes que pudesse me segurar, meu estômago deu uma volta completa. Peguei a taça de água e virei de uma vez na boca.
- Eu... odeio... frutos... do... mar. – disse finalmente, respirando arquejante depois de tanta água. Bernard olhava de mim para o prato sem saber o que dizer. Um garçom veio até a mesa.
- Alguma coisa errada?
- Meu namorado. Pode trocar para mim, por favor? – perguntei com raiva, mas o garçom continuou imóvel. – Esse maldito prato. Não quero isso. Tira.
- A comida não está temperada ao seu gosto? – o garçom insistiu, mas Bernard o olhou definitivo e ele retirou nossos pratos. – Posso lhes servir outro jantar então?
- Acho melhor trazer a conta. – Bernard disse seco e o garçom concordou. Quando ele se afastou, nos encaramos. – Melhor assim? Irmos embora?
- É. Muito melhor. – respondi azeda.
Não nos falamos mais. Bernard foi até a recepção pagar a conta e eu o esperei do lado de fora. Saímos andando e após alguns minutos, Bernard explodiu.
- Meses planejando tudo para que essa noite fosse perfeita! Depois do jantar poderíamos ir para meu apartamento, que essa noite vai estar completamente vazio, e lá ouviríamos músicas, conversaríamos. Ficaríamos a sós, entende? Quando tudo parece que vai dar certo...
- Eu estrago! Pode terminar a frase. Pode dizer que eu acabei com todos os seus brilhantes planos para um dia dos namorados romântico. Mas será que eu tenho direito de não comer carne e não gostar de frutos do mar? – perguntei irritada. Nos calamos.
Ficamos vários minutos em silêncio, cada um olhando um ponto do Rio Sena. Então, Bernard começou a rir descontroladamente.
- Do que você está rindo? – perguntei antipática.
- É óbvio: nós dois, eu e você, não podemos mais comemorar NADA em restaurantes! Nunca mais. Sempre sai alguma coisa errada.
Ele conseguiu fazer o que eu achava que seria impossível naquele momento, dado meu estado de ânimo. Ri também. Ele se aproximou e nos abraçamos.
- Desculpa ter pedido um prato com moluscos ao molho frescureé para você. Fui um tremendo idiota.
- Tudo bem. Desculpa ter feito aquele escândalo. Acho que depois dessa, você não consegue reserva lá nem com anos de antecedência.
- Ah, não ia tentar outra de qualquer maneira...
Nos beijamos. Depois ficamos abraçados um bom tempo observando o rio. Senti meu estômago roncar.
- Estou com fome. – disse e Bernard riu.
- Eu também.
- No apartamento de vocês já tem fogão? – perguntei zombadora e ele levantou a sobrancelha.
- Ta brincando? Claro que temos. Inutilizado, mas temos. Podemos improvisar alguma coisa... – ele sugeriu.
- Sem carnes e moluscos?
- Fechado.
~*~
Depois de termos “improvisado” uma lasanha congelada no sabor quatro queijos, fomos para o quarto de Bernard. Estava atualizando-o sobre as novidades do Grimoire e ele escutava com atenção.
- Máxime disse que vai ser bem difícil encontrar um culpado. Já descartamos os alunos do 7° ano, por que todos estavam na quadra conversando com ela. Mas não podemos descartar mais ninguém. Alguém de outra casa pode ter conseguido a senha da Sapientai. E se for mesmo da Sapientai, pode ser de qualquer ano, homem ou mulher. Se os dormitórios ainda não aceitassem homens...
Bernard me interrompeu com um beijo. De um momento para outro, eu estava deitada na cama dele, e ele do meu lado/em cima de mim, me fechando e me beijando. Ameaçou escorregar uma das mãos para minha cintura, e com a mesma velocidade que ele me rendeu, eu consegui me livrar. Levantei recuperando o fôlego.
- Já está na hora de voltar para o castelo, Bê. – disse firme.
- Ainda temos bastante tempo. – ele insistiu me puxando novamente, dessa vez para cima dele. Escapei.
- Não. Melhor eu voltar agora. Você vai me levar?
Ele me encarou um momento, mas sendo vencido, levantou-se.
- Tudo bem. Você quem sabe.
Desaparatamos alguns minutos depois no portão de Beauxbatons. Pelo som que vinha de dentro do castelo, o baile tradicional ainda estava acontecendo. Paramos.
- Não quer entrar? Ainda deve ter algumas tortas de sobremesa. – perguntei, mas ele não respondeu. Estava me olhando de uma maneira interrogativa.
- Qual é o problema?
- Problema?
- De nós dois. Já estamos juntos há mais de um ano, Bel. Nós nunca... você sabe. Qual o problema? É comigo?
A conversa que eu sempre evitava, agora estava jogada entre nós. Não tinha para onde correr.
- Não há problema nenhum. Eu só não sei se estou pronta, ainda.
- Depois de mais de um ano eu ainda não te convenci que eu realmente gosto de você? Bel, eu te amo. Acredite, eu nunca disse isso pra ninguém! – ele falou sério segurando minha mão e eu senti todo o meu corpo amolecer.
- Eu preciso entrar.
- Eu acabo de te dizer que te amo e você diz que precisa entrar? – ele se afastou incrédulo.
- Desculpa. Eu preciso de um tempo. – entrei no castelo. Comecei a caminhar me afastando do portão, mas sabia que ele ainda estava lá, me observando.
- Vou esperar o tempo que você achar necessário, então. – gritou. Parei de andar. Virei para encará-lo, mas antes que conseguisse, ouvi um estalo. Desapareceu. Encarei a estrada deserta um bom tempo me sentindo adormecida.
°°°
As semanas seguintes correram pacatas. Entre aulas e deveres, os alunos do 7° ano agora tinham uma nova “preocupação” na cabeça: a viagem de formatura. Não demorou muito e ela nos alcançou.
Na véspera do dia 7 de março, Máxime despachou todas as nossas bagagens e distribuiu os horários que cada chave de portal sairia. Não se falava de mais nada.
Na manhã da viagem, desci para tomar café da manhã com Brenda e Anne. Isa e Dora não demoraram a se juntar a nós, ambas vestidas com grandes botas de couro e roupas camufladas.
- Para que tudo isso? – perguntei analisando-as.
- Oras. Estamos indo para um lugar cheio de matas, desertos, safáris e sabe-se lá o quê mais. Temos de nos vestir adequadamente, não é? – Isa respondeu com simplicidade. Anne riu e Brenda concordou com ela. Não respondi.
- Se estão dizendo... Que hora vocês vão?
- Dentro de 1 hora, 23 minutos e 46 segundos, exatamente. – Dora consultou o relógio de pulso. – Brendan e os outros meninos do time da Fidei vão conosco. Eles também estão camuflados. – ela completou empolgada apontando para outros cinco ou seis garotos na mesa da Fidei com as mesmas roupas das duas. Eu e Anne trocamos um olhar mudo.
- Que gracinha. Todos em perfeita harmonia. – Ironizei e Anne caiu na risada. Isa sorriu.
- E vocês? Quando saem? – ela perguntou sem responder à provocação.
- Em 25 minutos. – Brenda respondeu empolgadíssima.
Tomamos café com tranqüilidade e nos despedimos das duas “Indiana Jones”, que foram se unir aos outros bonecos da coleção. Seguimos diretamente para a sala de Madame Máxime, que já nos aguardava com um velho guarda-chuva em cima da mesa. Todo o grupo se reuniu para ela dar as instruções.
- Quando chegarem lá, professora Emily vai ampará-los até o hotel. Esperem lá até segunda ordem. Quando finalmente todos os estudantes chegarem em segurança, vocês receberão um roteiro completo com todas as atividades. Entendido?
Concordamos e ela pediu que nos aproximássemos. Toquei um dedo no objeto e esperei até que todos se acomodassem ao redor dele. Anne estava do meu lado, e Brenda do lado dela. Ulisses Bonaccorsso surgiu do meu outro lado, sorrindo. Não correspondi.
- 3... 2... 1...
Aquela velha sensação de ser puxada abruptamente para trás. Um rodopio de cores. Meu dedo grudado no guarda-chuva. A mão de Ulisses grudada na minha. Alguns segundos depois, um baque. As pernas cederam um pouco, mas logo me recuperei. Olhei ao redor. Estávamos em um grande espaço deserto e um sol muito quente acima de nós. Senti algo apertando minha mão. Ulisses segurava ela com muita força e olhava ao redor encantado.
- Será que dá para soltar da minha mão? – perguntei com raiva puxando com violência. Ele sorriu.
- Desculpa Bella. Não percebi que ainda estávamos de mãos dadas. – ele respondeu animado. Fechei a cara. – Essa viagem promete ser ótima, não acha?
- Se você manter uma distância considerável de mim, sim, vai ser ótima.
Me afastei até Anne e Brenda que andavam pelo local observando tudo. Um minuto depois, Emily apareceu seguida por Sir-Shaft. Sorriam.
- Mais um grupo chegou. Ocorreu tudo bem?! Ótimo. Venham, vamos para o nosso hotel.
Emily disse empolgada e os seguimos. Seriam longos e quentes quinze dias na África do Sul.